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A luta pelo bom senso

Espero que chegue o dia em que o brasileiro médio possa se olhar no espelho e dizer: “Me arrependo de tudo, não quero ser este”

Rita Von Hunty (Foto: Reprodução/Redes sociais)
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Em A República, Platão lança sobre a sociedade ateniense um olhar, que, mesmo passados 2,3 mil anos desde a sua formação, pode nos instigar a pensar algumas questões sociais. Para o filósofo, aquela sociedade estava focada nos ricos, como o pretensioso aristocrata Alcebíades, e celebridades do esporte, como o boxeador Milo de Crotona.

Platão buscará então salientar que real­mente importa saber quem admiramos, porque as personalidades celebradas em uma sociedade influenciam nossas perspectivas, ideias e condutas. Portanto, o problema dos “heróis ruins” seria o fato de eles glamourizarem as falhas de caráter. Platão sugere que Atenas adote novas celebridades, substituindo as antigas por pessoas idealmente sábias e bondosas, que ele chamaria de “Guardiões”. Essas ­pessoas serviriam de modelo para o bom desenvolvimento daquela sociedade.

A elegibilidade dessas pessoas seria decidida a partir de seus históricos de serviço público, sua modéstia e hábitos simples, sua aversão aos holofotes e sua ampla e profunda experiência. Elas seriam as pessoas mais honradas e admiradas naquela sociedade. Quão pasmo estaria Platão com o hall de personalidades “celebradas” pela cultura brasileira hoje?

Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda publica Raízes do Brasil, do qual extraio a curiosa citação: “A contribuição brasileira para a civilização será o homem cordial”. Há de ser ressaltado, no entanto, que a cordialidade à qual o autor se refere não está ligada a uma polidez altruísta, mas a um ardil teatral, encenado a fim de manter enredado o outro, a fim de “viver nos outros”. A “cordialidade” paternalista e patriarcal identificada pelo sociólogo é a armadilha discursiva empregada no intento de manter cativo o refém.

Em 1977, Roberto Schwarz publica Ao Vencedor as Batatas, que traz, no primeiro capítulo, um ensaio fundamental sobre forma literária e processo social no País. Em As Ideias Fora do Lugar, Schwarz pontua que a ironia machadiana tem algo de intimamente brasileira. Como poderia uma nação ainda escravagista e constituída de desigualdades abismais e precariedades profundas pleitear-se “moderna” ou mesmo “liberal”?

Em 2018, Maria Rita Kehl lança Bovarismo Brasileiro, coletânea de ensaios que procuram refletir, no conjunto, sobre o desejo de alguns setores sociais do nosso país serem um “outro”, esteja esse outro no século XIX, com aspirações de republicanismo liberal francês, esteja ele no ­século XX, com o “sonho americano” incutido em nossos ideários via imperialismo (também cultural) estadunidense.
Tento traçar um preâmbulo histórico­ de algumas ideias que podem ser usadas na tentativa de compreender a “falta de noção” brasileira, que nunca é exatamente falta de noção, mas resultado e reflexo de um projeto político de dominação.

Essa aparente “falta de noção” exala daqueles que, preocupados com manifestações políticas em Cuba, não refletem sobre o embargo econômico imposto à ilha. Ou dos que admoestam sobre os “terrores venezuelanos”, os “delírios comunistas” e as “escolhas muito difíceis”, mas permanecem dissimuladamente reticentes diante das dezenas de famílias em fila na porta de um açougue, em obscena espera por ossos. Ou ainda dos repentinos patrulheiros do patrimônio artístico brasileiro que se põem horrorizados com um protesto legítimo contra a existência de estátuas que homenageiam estupradores, assassinos e torturadores, mas não moveram uma palha quando o acervo da Cinemateca Brasileira ardeu como resultado da negligência de um governo que depende da obsolescência da memória de seu povo.

É recorrente ouvirmos que o brasileiro é um povo sem memória. Pudera. Nos vendem a narrativa de que somos pacíficos, enquanto apagam a memória das dezenas de revoltas e insurgências dos pobres, escravizados e dissidentes no século XIX. Anistiam politicamente torturadores e torturados em uma das mais fraudulentas ditaduras da América Latina, sem nunca sedimentar as atrocidades cometidas pelo Exército. Criam seriados fantasiosos sobre juízes-heróis-de-bicicleta sem nunca apresentar a segunda temporada, na qual descobriríamos que o tal juiz orientava a acusação do processo que julgava, atuava para eleger o maior genocida da história, se tornaria seu ministro da Justiça e depois fugiria para os EUA, onde se vacinaria contra a pandemia que mataria mais de 500 mil brasileiros e declararia que “não se arrepende de nada”.

Dizem que somos “sem noção”, “não temos memória”, “não sabemos votar”, mas, na verdade, somos apenas vítimas das políticas perversas de dominação de uma elite que depende da ignorância do povo, da sua falta de identidade e de seu desespero por pão, circo e maus heróis e mitos. Espero que possamos seguir na resistência, rumo à emancipação de nossas consciências, e na luta política por uma história e uma memória das quais possamos nos orgulhar.

Espero que chegue o dia em que o brasileiro médio possa se olhar no espelho e dizer: “Me arrependo de tudo, não quero ser este, há muito trabalho a ser feito”. A luta pelo “bom senso” é uma luta constante.

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