Lucia Helena Silva Barros de Oliveira

Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro; atual coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Mestre em Direito.

Opinião

Uma Estrela que sempre vai brilhar

Nossa Estrela nos deixou fisicamente, mas nos legou esperanças e ensinamento.

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Quando comecei, não tinha noção sobre ser pioneira. Eu via através de cartas que recebia a grande importância de estar ali. Fui a primeira mulher a cobrir guerra, a apresentar jornal à noite, a primeira negra a apresentar o Fantástico. No início, eu não tinha noção, mas, com a resposta do público, passei a entender isso. As pessoas me davam parabéns por eu ser mulher e negra ocupando aquele espaço.

– Glória Maria

Inicio estas breves linhas movida, essencialmente, por um acentuado sentimento de perda e admiração por essa Estrela — Glória Maria Matta da Silva, a nossa Estrela Glória Maria, jornalista, repórter e apresentadora de um grande canal da televisão brasileira.

Confesso que fiquei preocupada se minha escolha não seria ousada e se minhas palavras seriam capazes de retratar a tão elevada importância que ela teve para todas nós, mulheres pretas. Contudo, o desejo de escrever sobre essa Estrela foi tão grande que me lancei ao desafio com parte da coragem de nossa Estrela. Afinal, quantas meninas ou mulheres pretas não buscaram espelhar-se em Glória Maria?

A filha do senhor Cosme Braga da Silva, alfaiate por profissão, e da senhora Edna Alves Marra, dona de casa, morou na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro e estudou em colégios públicos. Em 1971, ela começou a nos mostrar seus encantos na cobertura jornalística do desabamento do viaduto Paulo de Frontin, na cidade do Rio de Janeiro. Lá estava nossa Estrela, mulher preta, com seu cabelo black power — símbolo de luta contra o racismo que permeava, como permeia, a sociedade brasileira —, na tela da TV Globo, fazendo-nos acreditar que, sim, nós podíamos e tínhamos o direito de estar lá também!

Em uma de suas entrevistas, Glória declarou:

Quem nasce orgulhosamente negro sabe muito bem o que são obstáculos (…). Racismo é uma coisa que conheço, que eu vivi desde sempre. E a gente vai aprendendo a se defender da maneira que pode.

Entre os feitos de Glória Maria, em autêntica prova de superação do racismo estrutural, estão: a primeira entrada ao vivo e em cores na edição do Jornal Nacional e a apresentação de um importante programa de televisão, o Fantástico. Além disso, Glória fez jornalismo com uma leveza surpreendente, levando-nos a visitar com ela, através da telinha, em suas reportagens, uma grande quantidade de lugares — nacional e internacionalmente.

Contou-nos muitas histórias, mas também nos mostrou que podemos superar o racismo que esmaga o povo negro. Ela era a representante da mulher negra nas telas da televisão. Era a nossa representante, provando que não somente no jornalismo, mas também em qualquer profissão, a mulher negra pode se destacar.

Valorizando a diversidade e ensinando aos nossos irmãos brancos que a sociedade precisa superar o racismo, não faltaram episódios na vida de Glória Maria que apontassem para a defesa de nossa história. Ela foi uma das pioneiras a recorrer à Lei Afonso Arinos — a primeira lei contra o racismo no Brasil, o que nos remete à dificuldade do caminho percorrido pelo povo negro, mesmo decorridos tantos anos desde a Abolição. Aprovada em 1951, a Lei nº 1.390 tentava, de certa forma, combater a discriminação racial sofrida pelo povo negro.

Retomando o episódio vivenciado por Glória Maria — entre tantos sofridos antes e depois —, ela se viu obrigada a recorrer à legislação porque fora impedida de entrar em um hotel por um gerente, ao argumento de que, ali, negro não podia entrar. Infelizmente, no caso em questão, o racismo sofrido não gerou grande dano ao gerente, pois, em nosso País, é sabido que o racismo não gera muitas consequências para quem o pratica, gerando, contudo, consequências graves para aquele que o sofre, não importando a condição social da vítima. Como dizia nossa Estrela, “nada blinda preto de racismo, ainda mais a mulher preta. Nós somos mais abandonadas, discriminadas. Você tem que aprender a se blindar da dor. Se você for esperar o blindamento universal, estará perdida”.

A jornalista Glória Maria. Foto: Reprodução/Redes Sociais

Nossa Estrela fez história e ficará positivamente impregnada em nossas memórias, por haver deixado um legado incrível, sobretudo para a mulher negra, em razão de seu pioneirismo em diversos segmentos. A primeira mulher a ocupar espaço como protagonista de uma grande rede de televisão de nosso País, desvinculando a imagem da mulher preta das imagens rotineiramente mostradas na televisão, como empregadas domésticas, secretárias e outras profissões afins. O fato é que, ainda hoje, a sociedade não está acostumada a ver a mulher preta em shoppings fazendo compras, ministrando aulas nas universidades, usando togas ou atuando como defensoras públicas, advogadas ou médicas.

É preciso repetir para conscientizar, sempre e sempre: o lugar da mulher preta é onde ela quer estar!!! É preciso entender que podemos tudo! Podemos ocupar qualquer espaço de poder, apresentar jornais, ser protagonistas em filmes e novelas, atuar na política etc. Mas quantas dificuldades enfrentamos para romper com os privilégios da branquitude! Sabemos que não é tarefa fácil e que a luta da mulher preta é imensa, pois não temos representatividade nos espaços de poder — nós ainda precisamos nos fazer representar!

Para além de ocupar espaço de relevo em uma grande rede de televisão, Glória Maria foi a primeira mulher a fazer jornalismo de aventura, voando de asa-delta, cobrindo guerra, subindo morros e favelas. Também conseguiu entrevistar muitas celebridades. Glória sempre se lançava, mostrando-nos que sempre somos capazes de superar os obstáculos que se apresentam à nossa frente.

Uma verdadeira fonte de inspiração para tantas mulheres, por ter sido a primeira mulher negra de destaque no jornalismo de uma grande emissora, é por sua luta que, hoje, vemos em nossas telas tantas mulheres e tantos homens negros. Ademais, muitas meninas pretas, ao vê-la em posição de destaque, se empoderaram e acreditaram que elas também poderiam chegar à universidade, graduar-se e ocupar alguns espaços que, até então, eram protagonizados apenas por brancas e brancos.

Nossa Estrela nos deixou fisicamente, mas nos legou esperanças e ensinamentos, pois sabemos dos obstáculos que vivenciamos e sabemos quão difícil é superar as barreiras impostas ao povo negro. Nossa Estrela nos mostrou que sempre podemos lutar e vencer num País construído sobretudo pela mão de obra do povo negro e, ao mesmo tempo, marcado pelo privilégio de nossos irmãos brancos. Somos todos iguais, e é a bandeira do amor que deve estar sempre hasteada entre todos nós, independentemente da cor de nossas peles!

Já encerrando estas linhas, registro minha gratidão à nossa Estrela, que sempre vai brilhar, iluminando nossos caminhos, e deixo uma frase para reflexão, proferida no encerramento do Encontro de Feministas Negras em Portugal:

“Ser mulher negra é a minha essência, e não a minha sentença.”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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