Justiça

Pioneirismos tardios de um racismo persistente

É necessário refletir sobre as razões que levaram 131 anos para a primeira pessoa negra assumir o cargo de titular na Faculdade de Direito da Federal da Bahia, a maior cidade negra fora do continente africano,

Heron Gordilho é o primeiro professor negro titular da história da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Foto: MPBA
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Nas últimas semanas, foi notícia em importantes órgãos de comunicação do país a ascendência de um promotor de justiça negro ao cargo de professor titular na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Essa seria uma notícia comum não fosse o fato de que o Dr. Heron José de Santana Gordilho é o primeiro negro a assumir a titularidade de uma cadeira naquela faculdade, fundada em 1891.

O episódio por si só causaria espécie em razão de ter havido a necessidade de 131 anos para que a estrutura racista acadêmica permitisse a titularidade de um homem negro no topo da carreira de magistério. Entretanto, há mais para causar espanto: além da espera secular, é digno de nota que a antiga Faculdade “Livre” de Direito da Bahia esteja instalada na capital baiana, Salvador, a cidade mais negra fora do continente africano.

O professor assinalou que não queria que fosse assim. Em entrevista concedida ao G1, disse: “Queria ser o centésimo. Tenho orgulho, sim, de alcançar esse cargo. […] A nossa sociedade, mesmo sendo composta por 80% de pessoas negras, precisou de 131 anos para um professor negro ocupar esse cargo”.

Nesse caso, a celebração individual é a única possível. Coletivamente, celebrar o pioneirismo de pessoas negras em cargos de destaque na sociedade brasileira, 134 anos após a abolição da escravatura, é a demonstração de que efetivamente a Casa Grande permanece vencendo. A emancipação precisa ser coletiva. A manutenção de qualquer um dos nossos nas senzalas da contemporaneidade e nos porões da invisibilidade não deve interessar a ninguém.

Não sabemos quantos séculos serão necessários para que haja um outro professor titular negro na UFBA, mas a ausência de negros na academia não é um privilégio baiano.

Menos de 3% das instituições de ensino superior brasileiras têm número de professores(as) negros(as) a espelhar a distribuição racial da região onde estão instaladas. Esse levantamento foi realizado pelo Estadão. Conforme a pesquisa, das 823 instituições que participaram do Censo, somente 23 têm quantidade de professoras(es) negras(os) que reflete a distribuição racial do Estado. A única universidade pública com equidade racial é a do Estado do Amapá.

Em julho passado, docentes negras(os) da USP apontaram a necessidade de ampliar o número de professoras(es) negras(os) na universidade, reivindicando a implantação de reserva de vagas para pessoas negras nos seus concursos públicos e a criação de um incentivo à progressão na carreira docente, “principalmente para as vagas de titular”, garantindo representatividade negra em cargos de gestão na Reitoria e no Conselho Universitário. Os dados são assustadores. Dos mais de 5,5 mil professores e professoras da USP, apenas 125 são negras(os), o que representa 2,3% do total. A primeira professora negra da Faculdade de Direito da USP, Eunice Prudente, cujo ingresso se deu nos anos 1980, ainda é a única. A primeira e única em 195 anos. A pioneira recentemente aposentou-se. Todavia, continua exercendo as funções de professora sênior.

Eunice Prudente, a primeira e única mulher negra a ser professora na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foto: USP.

Se as instituições de ensino ainda nos surpreendem com seus “pioneirismos” e a escassez de representatividade negra, o Sistema de Justiça não é diferente.

O Poder Judiciário, somente no ano de 2014, através do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mapeou, pela primeira vez, o perfil dos magistrados e servidores do Poder Judiciário brasileiro, apresentando inédita pesquisa institucional na qual foram expostos dados sobre cor/raça na magistratura, cujo objetivo era subsidiar a adoção de ações afirmativas no Poder Judiciário. A iniciativa pioneira de uma política antirracista se deu a partir da presença de um ministro preto no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Joaquim Barbosa. O primeiro e único em 131 anos.

 

Não obstante as paulatinas mudanças que vêm ocorrendo até aqui, os estudos comprovam que estamos diante de uma magistratura que está longe de representar a pluralidade da sociedade brasileira. A Pesquisa Negros e Negras no Poder Judiciário, publicada pelo CNJ em 2021, noticia a presença de somente 12,8% de negros(as) na magistratura e projeta uma equivalência racial a ocorrer entre 2056 e 2059. Daqui a mais de 30 anos.

As estatísticas demonstram indubitavelmente uma ausência de diversidade racial nas instituições do país. A Academia e o Poder Judiciário são exemplos, mas não são exceção.

Em relação às Defensorias Públicas no Brasil, em setembro de 2021, foi iniciado um “Levantamento de Perfil Étnico-Racial e Interseccional de Defensoras e Defensores Públicos” pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos – ANADEP, com o objetivo de fomentar a reflexão sobre o tema na instituição. Os resultados que seriam conhecidos em dezembro passado não chegaram a ser divulgados. O motivo teria sido a ausência de adesão ao levantamento. “Pouca gente respondeu ao formulário, [por isso] não existe essa informação”, afirmou a Defensora Pública Carla Carol, Coordenadora da Comissão Étnico-racial da ANADEP.

No Ministério Público inexiste, até o momento, uma pesquisa institucional nacional sobre a representatividade negra no órgão. O único levantamento em nível nacional foi realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESC), em 2016, cuja pesquisa intitulada  “Ministério Público: Guardião da democracia?”, feita com base em entrevistas e informações dos próprios membros do MP, revelou que 77% deles são brancos, 20% se consideram pardos, apenas 2% pretos e 1% amarelo. “O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) está trabalhando para a realização de estudo sobre o tema, ainda preliminar, com o IPEA”, informou a promotora de justiça Lívia Sant’Anna Vaz, Coordenadora do Grupo de Enfrentamento ao Racismo no CNMP.

E por que negros e negras não têm conseguido ocupar esses espaços seculares de poder e de transformação social como os cargos nas universidades e nos do sistema de justiça?

Costumeiramente tenho levado interlocutores à reflexão sobre duas possibilidades a explicar o fato: ou pessoas negras seriam intelectualmente incapazes, a partir de uma perspectiva do racismo cientifico (muito presente no final do século XIX, protagonizado por professores das faculdades de medicina da Bahia, como Nina Rodrigues, e do Rio de Janeiro, como Jansen Ferreira) ou há barreiras estruturais que, de tão naturalizadas, dão ares de normalidade às ausências de pessoas negras nesses lugares: a prova do racismo estrutural.

A resposta, portanto, que poderia parecer complexa, é simples: o racismo. A realidade nua, crua, também é clara: estamos diante de um mundo dos brancos. Nesse mundo, de modo consistente e normalizado, a maioria de homens e mulheres brancos se mantêm incólumes em sua posição de privilégio, enquanto pessoas negras continuam subalternizadas de maneira natural, causando diferenças entre os grupos.

E não se está em busca de inimigos, mas de soluções possíveis para que não estejamos mais, em pleno século XXI, estupefatos diante da chegada de pessoas negras a lugares que elas sempre deveriam estar. Nas palavras de Foucault, in “Em Defesa da Sociedade”, não seria o caso de analisar o poder no nível da intenção ou da decisão, mas de buscar o poder naquele exato ponto no qual ele se estabelece e produz efeitos. E nesse sentido, é essencial analisar nossos comportamentos individuais e os processos institucionais, porque, em regra, são pautados de maneira racista.

A mudança do estado de coisas é uma urgência. Para cada pioneiro negro, para cada pioneira negra impõe-se a constitucional ação afirmativa no espaço secularmente negado, visando a corrigir as distorções resultantes de uma aplicação meramente formal do princípio da igualdade.

Queremos Heron e Eunice, mas não são o bastante. Eles sabem disso. Na verdade, todos nós sabemos. E precisamos agir afirmativamente para nos tornarmos diferentes como sociedade. Somente através das ações que incluem, que legitimam, que se apropriam do diferente e que emancipam, os pactos de branquitude poderão ser quebrados, as redes de compadrios serão desmascaradas e os acordos espúrios serão revelados. As mudanças chegarão, mas não queremos esperar mais 131 anos para isso.

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