Justiça

O Pacto Nacional do Judiciário para a Equidade Racial e o pacto narcísico da branquitude

Comprometimento entre instituições de justiça por maior pluralidade tem a dura tarefa de vencer histórico sistema de privilégio a pessoas brancas.

Sessão do Conselho Nacional de Justiça pelo Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Foto: Gil Ferreira/Agência CNJ.
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No último dia 25 de novembro, em pleno mês em que se celebra a Consciência Negra, a presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministra Rosa Weber, na primeira reunião do Observatório de Direitos Humanos (ODH), promoveu o lançamento do Pacto Nacional do Judiciário para a Equidade Racial (“Pacto”).

Em uma gestão voltada à centralidade da temática dos direitos humanos, alinhada com a paridade de participação feminina e a representatividade entre seus auxiliares, a fala da presidente foi de defesa de uma mudança de cultura institucional no Judiciário, alicerçada no princípio constitucional da igualdade humana.

É sabido que um pacto é sinômino de acordo de vontades, que pressupõe mais de uma pessoa ou instituição. Neste sentido, a Ministra Rosa Weber, em sua fala durante o lançamento, destacou que “o Pacto conclama todos os tribunais brasileiros à união de intenções e ações concretas para que tenhamos uma política, de fato, apta a combater o racismo em nosso país, não podemos ignorar, lamentavelmente racista”.

No ato, houve a adesão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), por meio da assinatura do ministro Lelio Bentes Corrêa. A ministra Maria Thereza de Assis Moura, presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Conselho da Justiça Federal (CJF), em breve firmará o documento.

Sessão do Conselho Nacional de Justiça pelo Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Foto: Gil Ferreira/Agência CNJ.

O Pacto tem como objetivo combater e corrigir as desigualdades raciais, por meio de medidas afirmativas, compensatórias e reparatórias, para a eliminação do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário. Visa também ao fortalecimento de uma cultura pela equidade racial no Poder Judiciário, a partir de um agir consciente, intencional e responsável, visando à desarticulação do racismo estrutural.

Em plena Década Internacional de Afrodescendentes da ONU (2015-2024), o Pacto pauta-se nas premissas dos mais importantes instrumentos internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário e surge como um compromisso formal e solidário dos tribunais brasileiros de cumprir diversas normas e jurisprudências internacionais e nacionais relativas à igualdade racial.

Esse lançamento ocorre sete anos após o Conselho Nacional de Justiça ter aprovado a Resolução n. 203/2015, a qual dispunha sobre a reserva de 20% das vagas às pessoas negras no âmbito do Poder Judiciário e dois anos após a apresentação do Relatório para a Igualdade Racial no Poder Judiciário, elaborado pelo CNJ em 2020, com a imprescindível participação de pessoas da academia e da sociedade civil, muitas das quais negras, contribuindo a partir de seu lugar de fala.

O Relatório, entretanto, apontou que, somente em 2044, os cargos de magistratura de todos os tribunais brasileiros alcançariam um índice de ocupação de, pelo menos, 22% de magistrados e de magistradas negras. Uma outra pesquisa denominada Negros e Negras no Poder Judiciário, de 2021, também do CNJ, admite um cenário ainda pior: a equivalência de pessoas negras na magistratura seria atingida apenas entre  os anos de 2056 e 2059.

É importante ressaltar que o Pacto, que se apresenta agora à sociedade brasileira, reflete todo um trabalho coletivo de anos.

É impossível não evidenciar o fato de que o Movimento Negro tem pautado incessantemente nas últimas décadas a existência do racismo estrutural e institucional, inclusive no Judiciário brasileiro, requerendo soluções concretas.

Certo de que há ainda muito a fazer, o Poder Judiciário, então, compromete-se a adotar medidas de igualdade, equidade, inclusão, combate e prevenção ao racismo estrutural e institucional. Para tal mister, o Pacto atuará observando quatro eixos: (i) a promoção da equidade racial no Poder Judiciário; (ii) a desarticulação do racismo institucional; (iii) a sistematização dos dados raciais do Poder Judiciário; e (iv) a articulação interinstitucional e social para a garantia de uma cultura antirracista na atuação do Poder Judiciário. Tais eixos se subdividem e são vetores para uma série de ações que pretendem ser colocadas em prática a partir de um plano de trabalho.

Inicia-se um novo momento no Judiciário brasileiro!

No entanto, é possível dizer que, para o cumprimento do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, alguns outros pactos deverão ser desfeitos, sendo o principal deles o Pacto Narcísico da Branquitude, o qual impede a promoção da igualdade entre os seres humanos. Tão bem definido por Cida Bento, o pacto narcísico se expressa no comportamento de indivíduos brancos, que se autoprotegem e reproduzem práticas que tendem a olhar apenas para si próprios, beneficiando apenas as mesmas pessoas.

Para a autora, “Narciso se transforma numa metáfora de uma sociedade que ainda não resolveu sua história colonial, uma sociedade patriarcal branca, que está obcecada por si própria e com a reprodução de sua própria imagem, tornando todas as outras invisíveis”.

Com efeito, não existe pessoa negra no Brasil que não viva atravessada pelo racismo, que se apresenta desde a concepção, a partir de tratamentos diferenciados no acesso à saúde pela população negra na atenção materna, passando pelas condições de moradia, alimentação, educação e culminando com a total insegurança institucional, que gera mortes de negros e negras prematuramente, muitas vezes pelas mãos do próprio Estado.

A expressão do racismo na sociedade brasileira reside exatamente no fato de os números serem sempre desfavoráveis à população negra, o que demonstra que instituições, privadas e públicas, operam de modo a impactar diferentemente os grupos raciais, induzindo, mantendo e condicionando suas organizações e ações de modo a produzir e reproduzir a hierarquia racial.

Nota-se, portanto, que o funcionamento ou não funcionamento das instituições para determinados grupos torna-se fundamental para a satisfação de seus direitos e determina o modo como vão existir socialmente. É que o pacto narcísico da branquitude pode apresentar-se também nas instituições.

Como Anatol Rosenfeld afirma, em seu “Preconceito, Racismo e Política” (Perspectiva, 2019): “O racismo é o modo melhor de querer ser melhor que o outro – sem a necessidade de esforço próprio. O racismo é a expressão de todas as forças antidemocráticas, que se baseiam nos privilégios dos ‘bem-nascidos’ e da herança, seja biológica ou economicamente falando.”

Essas diferentes dimensões de funcionamento da sociedade, a partir dos anseios da branquitude, são fundamentais para a compreensão ou não da necessidade do acesso a direitos fundamentais e na construção de políticas judiciárias à remoção das barreiras existentes.

A hierarquização dos sujeitos, as ideias de superioridade e de subordinação conduzem a comportamentos que diferenciam uns dos outros, criando de um lado privilégios sociais à parcela não racializada e, de outro, obstáculos àquelas pessoas consideradas sujeitos de direitos, mas de uma segunda categoria, que acabam sendo privadas de bens da vida que podem lhes garantir dignidade existencial.

Nunca é demais trazermos as palavras de Lélia Gonzales, tão bem lembradas pela presidente em sua fala inaugural no Observatório de Direitos Humanos: “Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial.”

O pacto abre caminhos para o início de mudanças significativas dentro da estrutura Judiciária do nosso país, razão pela qual almejamos que todos os tribunais brasileiros sejam signatários desse compromisso, pois para além do cumprimento dos comandos constitucionais, estaremos dando um grande passo para o progresso e para a transformação de vidas.

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