Zumbido – Justiça antirracista

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O carnaval já vai. E a gente, “cumé que fica?”

Além da espoliação estética, artística e conceitual que fazem do carnaval um espetáculo negro de máscaras brancas, é na obscenidade da exploração física e do trabalho pesado que o racismo nem sequer disfarça

Seu Zé Pilintra, Exu da Rua, no enredo da Grande Rio, campeã do Carnaval. Foto: Eduardo Hollanda | @eduardohollanda
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O carnaval é a própria epítome do Brasil. É nessa passarela que desfilam e se engalfinham nossas contradições e desejos, nossa força, nossos absurdos coletivos e individuais, nossa desigualdade, nossa exuberância, nossa miséria, nosso deboche. Luxo e cansaço coletados pelas mãos do mesmo catador. Amor e ódio vendidos pelas mãos da mesma ambulante. Beleza e caos sustentados nos braços do mesmo cordeiro. E é também o carnaval a sempre nova e sempre velha reencenação do mito fundador-demolidor daquilo que somos quando cai o pano: um país racista e neurótico, que tenta denegar sem sucesso sua evidente negritude, e um povo negro que revida gozando e impõe o seu direito de sambar, mesmo pagando o preço na ponta de um cassetete qualquer. 

Em seu ensaio Racismo e Sexismo na cultura brasileira, Lélia Gonzalez – fevereira e certeira que só ela – é quem dá o papo que permite que a gente compreenda os complexos cruzamentos entre poder e desejo envolvidos nesse bloco. A tentação cognitiva para acolher o carnaval como uma representação da democracia racial não é fruto do acaso: ela segue se colocando entre nós, fruto do trabalho bem feito pela branquitude para vivificar o mito, calar a tensão racial e recalcar a negritude manifesta. Porém, a negra rainha é a cara da moça que cata latinha, e as duas são da mesma cor.

Conforme a proposição de Lélia no ensaio A categoria político cultural de amefricanidade, o Brasil não seria um país de formações inconscientes exclusivamente europeias, brancas, como supunha nossa intelectualidade até ali, mas, ao contrário, traria em si a impressão, gravada no inconsciente, de nossa constituição a partir da negritude e dos povos originários. Constituiria, por isso, uma América Africana, “onde a latinidade se faz ausente e vê nascer uma Améfrica Ladina”.

Assim, em termos de formação dos inconscientes e de sua expressão na cultura, todos os brasileiros, e não apenas os negros, seriam ladino-amefricanos. Ocorre que, por conta da neurose cultural brasileira, o racismo seria justamente um sintoma da denegação de nossa ladino-amefricanidade, mecanismo pelo qual os “brancos” se voltam justamente contra contra o testemunho vivo daquela, ou seja, as negras e os negros, destinando-lhes toda sorte de violência material e simbólica, ao mesmo tempo em que negam que o racismo exista, insistindo no mito da democracia racial.

Enquanto isso, a mais-valia do carnaval deita e rola nas costas do carregador de gelo, do entregador do Ifood, do mototaxista, da tia do churrasquinho, da mulher do isopor de cerveja, do que seria cômico se não fosse trágico Uber “black”. Além da espoliação estética, artística e conceitual que fazem do carnaval um espetáculo negro de máscaras brancas, é na obscenidade da exploração física e do trabalho pesado que o racismo nem sequer disfarça. É por conta disso que, além do direito de sambar, fazem falta o direito às garantias trabalhistas, o direito à não precarização do trabalho, o direito às condições decentes de gerar renda e defender a dignidade. Sem isso, a democracia, por aqui, seguirá caindo bem como mera fantasia de carnaval.

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