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De Arinos a Anielle: o direito de acesso à Justiça como chave para combater o racismo institucional

O primeiro projeto de lei sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2023, durante a cerimônia de posse da ministra Anielle Franco, atende a uma demanda histórica do movimento negro brasileiro, ao tipificar a injúria racial como crime de racismo e promover […]

TANIA REGO/AGÊNCIA BRASIL
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O primeiro projeto de lei sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2023, durante a cerimônia de posse da ministra Anielle Franco, atende a uma demanda histórica do movimento negro brasileiro, ao tipificar a injúria racial como crime de racismo e promover outras alterações na Lei n.º 7.716/89.

Uma voz corrente dentre os estudiosos das desigualdades raciais no sistema de Justiça é a sistemática omissão das instituições na garantia de efetiva proteção a pessoas vitimadas por crime de racismo.

Tradicionalmente, o pleno exercício do direito à Justiça não é garantido a pessoas negras deste país. Como aconteceu com Simone André Diniz, mulher negra, estudante de enfermagem, que na década de 1990 foi vítima de racismo ao concorrer a uma vaga de emprego, em geral pessoas negras são alvo de uma dupla violência racial.

A primeira é o crime de racismo propriamente dito e a segunda se dá quando as autoridades policiais, ministeriais e judiciárias mobilizam mecanismos institucionais aparentemente neutros que: desacreditam a palavra da vítima, lhes subtraem o direito à prova, minimizam o poder ofensivo do crime de racismo e deixam sem qualquer resposta justa as agressões racistas à dignidade das pessoas negras.

Não à toa o caso de Simone André Diniz resultou em amplas recomendações ao Estado brasileiro, por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que apontou que o racismo institucional presente no sistema de justiça é um obstáculo à aplicabilidade das leis de crimes raciais.

A primeira legislação brasileira que criminalizou o racismo foi a Lei Afonso Arinos, Lei n.º 1.390 de 1951. O elemento catalisador dessa normativa foi um fato que envolveu a bailarina e coreógrafa estadunidense Katherine Dunham que, em turnê pelo Brasil, foi impedida de hospedar-se no Esplanada Hotel, em São Paulo, que “não aceitava hóspedes negros”.

O escandaloso episódio de racismo vivido por Dunham colocava em xeque um mito fundamental da sociedade brasileira da época: o de que o Brasil era o mais perfeito exemplo de democracia racial. E, com isso, o projeto de Arinos rapidamente avançou no Congresso Nacional, para aplacar qualquer dúvida de que as “três raças” conviviam harmoniosamente no País.

As penas irrisórias previstas e a forte crença das instituições e da sociedade no mito da democracia racial não nos permitem qualificar a Lei 1.390/51 como uma conquista de cidadania. O caráter simbólico foi o que prevaleceu…

Já na década de 1980, o jornalista e advogado baiano Carlos Alberto Caó de Oliveira, então deputado federal, movimentou-se na Assembleia Nacional Constituinte, ao lado de outros parlamentares negros e negras, para inscrever o racismo na Constituição de 1988, como crime inafiançável e imprescritível. Caó, ombreado com a deputada federal Benedita da Silva, foi o responsável pela mobilização em favor do projeto que resulta finalmente na Lei n.º 7.716/1989, o primeiro diploma que, de fato, previu tipos penais específicos e cominou penas à altura do mandamento constitucional.

Todavia, apesar do avanço no plano legislativo, como demonstra o Relatório de Mérito do Caso Simone André Diniz na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, persistiram em perfeito funcionamento os mecanismos de racismo institucional do sistema judiciário que privam de acesso à Justiça pessoas negras vitimadas por crimes raciais.

A alteração do Código Penal para inclusão da figura da injúria racial no artigo 140 fragilizou ainda mais a proteção jurídica das vítimas de crimes raciais, ao criar uma figura com punição menos severa e com elementos subjetivos próprios: um prato cheio para a confusão com os tipos penais da Lei n.º 7.716 e para a relativização do racismo como ofensa de menor importância.

Este cenário histórico foi abordado na discussão da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados, que se debruçou sobre a legislação brasileira na perspectiva do enfrentamento do racismo e fez amplas sugestões de atualização, aprimoramento e reforma legislativa. O relatório publicado pela comissão é um dos documentos em que se inspira a recém promulgada Lei n.º 14.532/2023, sancionada pelo presidente Lula em 11 de janeiro de 2023.

Diante das diversas intervenções no plano abstrato da lei que desaguaram no vazio, é importantíssimo chamar atenção para aquela que considero a maior inovação do novo diploma: a previsão do direito de acesso à Justiça para a vítima de crime racial, em todos os atos processuais cíveis e criminais, por meio da assistência jurídica de advogado ou defensor público (art. 20-D da Lei n.º 7.716/89, com redação dada pela Lei n.º 14.532/2023).

A garantia de assistência jurídica à vítima de crime racial é a grande ferramenta capaz de atacar as barreiras do racismo institucional, seja na fase de investigação, seja no curso do processo penal, por meio do questionamento de estereótipos raciais, da fiscalização da devida diligência investigatória, da postulação de produção de provas, da defesa contra a revitimização da pessoa ofendida no curso do processo etc.

Ao fim e ao cabo, o direito de assistência jurídica à vítima de crime racial é o instrumento que poderá desempenhar um papel pedagógico e transformador da cultura institucionalmente racista do sistema de justiça em direção a um acesso à Justiça igualitário para negros e negras.

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