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Despertar para a realidade exige esforço e reflexão crítica

Segundo Paulo Freire, toda ação libertadora é necessariamente acompanhada de uma profunda reflexão

(Foto: Federação Única dos Petroleiros)
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– “O que aprendi ao longo dessas décadas é que todos precisam despertar, porque, se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda”

Ailton Krenak

No meio do vendaval que estamos vivendo, muitos têm se questionado sobre por onde começar. A nossa realidade foi encomendada há muitos séculos e seguiremos paralisados diante da crise social e ambiental da atualidade se não compreendermos exatamente quem nós somos – e porquê somos quem somos. Precisamos, como diz Ailton Krenak (2019), despertar para a realidade e, ao invés de tentar desesperadamente eliminar a queda, inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos.

Para despertar precisamos compreender inicialmente o significado de habitarmos essa porção de terras batizada, há mais de 500 anos, como Brasil. Isso pressupõe entendermos que a versão contada de que a “descoberta” do Brasil se deu em um dia ensolarado, quando os colonizadores europeus encontraram “bons selvagens” em uma praia paradisíaca, não é verdadeira. Assim como a romântica história de que uma princesa libertou os “escravos” e, a partir daí, passaram todos a viver em um país miscigenado, pautado por uma democracia racial; ou mesmo de que as mulheres são “elas meninas, que vêm e que passam num doce balanço, a caminho do mar”. Essa harmonia histórica, que queremos muito acreditar, infelizmente nunca existiu.

A história do Brasil, como a própria história do mundo, é definida por uma sucessão de violências.

O que diferencia a violência das colônias é que ela veio de navio. Em um primeiro momento, a violência foi importada da própria Europa. Os missionários e conquistadores que cruzaram o oceano rumo às “índias” traziam na bagagem os ideais de uma sociedade que, sob acusações de adoração ao demônio e práticas de feitiçaria, praticou um genocídio contra as mulheres, especialmente camponesas.

Primeira missa no Brasil. Pintura de Victor Meirelles

Nesse sentido, Silvia Federici (2017) ressalta que, ao contrário do que se acredita, a caça às bruxas não se limitou à idade das trevas. A doutrina sobre bruxaria foi sistematizada a partir da metade do século XV, culminando com a publicação do “Malleus Maleficarum” (O martírio das bruxas) em 1486, nas vésperas da viagem de Cristóvão Colombo. Foi, assim, nas mesmas décadas que os colonizadores espanhóis subjugaram as populações americanas, que começou a aumentar a quantidade de mulheres julgadas como bruxas.

A “herança” europeia dessa sociedade fragmentada, pautada em sistemas de dominação nas relações interpessoais entre os gêneros, está umbilicalmente ligada à violência racista contra os povos tradicionais que viviam no continente – batizados como “índios” – e contra a própria natureza. Está, igualmente, vinculada à violência praticada contra homens e mulheres retirados à força do território africano e trazidos para o território colonizado para que servissem de força de trabalho escrava.

A subjugação das mulheres tem relação com o próprio processo de colonização, na medida em que se tratam de formas de dominação e de exploração necessárias ao desenvolvimento do capitalismo. A fim de permitir a acumulação primitiva de capital, era necessário que as próprias relações sociais fossem pautadas na violência e na hierarquização dos seres humanos, com controle dos corpos que pudessem ser úteis ou prejudiciais ao sistema. Acusações “de adoração ao demônio foram levadas à América para romper a resistência das populações locais, justificando assim a colonização e o tráfico de escravos ante os olhos do mundo” (Federici, 2017).

A pensadora italiana Silvia Federici

Mais de 500 anos depois, não conseguimos romper essa persistência história e, não por acaso, vivemos hoje no país mais desigual da América Latina e em um dos mais desiguais do mundo. As violências praticadas contra mulheres, contra descendentes dos africanos e indígenas escravizados e contra a natureza são a herança que recebemos. Nós, que habitamos essa porção de terra batizada de Brasil, fundada pela violência, precisamos ter em mente que racismo, sexismo e a desconexão com a natureza não apenas estruturam a nossa sociedade. São estruturantes também da nossa própria subjetividade.

Despertar para a realidade pressupõe, assim, refletirmos de forma crítica e profunda sobre o nosso próprio racismo, sexismo e colonialismo. Sobre o modo como nos relacionamos com os demais, percebendo que as opressões nada mais são do que formas de cegueira humana que brotam da mesma raiz: “a inabilidade de reconhecer o conceito de diferença como uma força humana dinâmica, que é mais enriquecedora do que ameaçadora” para de definição dos indivíduos (Lorde, 2019).

Se queremos realmente contribuir para a construção de um mundo melhor, mais justo e igualitário, temos que retomar a lição de Paulo Freire (2014): toda ação libertadora é necessariamente acompanhada de uma profunda reflexão. Somente compreendendo a nossa própria posição na estrutura social – nossos privilégios e vulnerabilidades – e lembrando que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho”, podemos, juntos, nos libertar em comunhão. A revolução começa – mas não termina – dentro de nós!

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