Psicodelicamente

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Livro pioneiro sobre xamanismo, relançado no Brasil, falha ao não abordar apropriação cultural

Considerado um clássico do gênero, ‘O Caminho do Xamã’, de Michael Harner, evita considerações éticas em torno das práticas xamânicas, tão banalizadas atualmente

(Ilustração: CartaCapital/Midjourney)
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Com vendas em queda e preços em alta, o cenário árido de livros sobre xamanismo e psicodélicos publicados no Brasil não deve mudar tão cedo. Segundo uma pesquisa recente, em 2023 as editoras venderam 8,8% menos do que em 2022, e os preços subiram 6% no mesmo período. Por isso mesmo, vale destacar alguns poucos sopros de esperança que chegam por aqui, como o relançamento de O Caminho do Xamã: um guia de poder e cura, do antropólogo norte-americano Michael Harner, que já teve uma edição brasileira lançada em 1995 pela editora Cultrix e ganhou uma nova edição no final de 2023 pelo selo Goya da editora Aleph.

Vale citar que este é o segundo título sobre o tema lançado pelo selo. Há pouco tempo, a editora também lançou outro clássico do campo dos alucinógenos: A Experiência Psicodélica, do guru da contracultura, o psicólogo norte-americano Timothy Leary. Certamente uma aposta na popularização do assunto. Os alucinógenos estão cada vez mais conhecidos. Isso graças ao volume de novas pesquisas que acumulam resultados promissores para o uso dessas substâncias no tratamento de uma enorme variedade de patologias.

No caso de O Caminho do Xamã, lançado nos EUA em 1980, seu relançamento, quatro décadas após a publicação original, tenta pegar carona nesse bom momento dos psicodélicos. É, de fato, um momento oportuno para também debater a importância das cosmovisões ancestrais. Antigas tradições foram fundamentais para o início das investigações sobre substâncias como ayahuasca, mescalina, iboga, entre outras. Pesquisadores defendem que seja uma questão de tempo para que parte delas entre para o mainstream das prescrições. Mas, em geral, o setor, dominado e norteado por uma perspectiva Norte Global e de mercado, segue indiferente ao conhecimento tradicional de povos originários, como por exemplo os da Amazônia – um reconhecido berço do xamanismo e da ciência psicodélica.

Uma das religiões mais antigas da humanidade

A obra de Harner nem de longe supre a enorme carência de publicações sobre o xamanismo amazônico, praticado há milênios na região. E também falha em sua abordagem limitada das considerações éticas a respeito das tradições indígenas e em torno das práticas xamânicas, tão banalizadas nos dias atuais. Embora o antropólogo toque brevemente no assunto, uma análise mais aprofundada sobre os riscos da apropriação cultural teria sido muito importante.

Ainda assim, o livro de Harner, lançado nos Estados Unidos em 1980, é conhecido como o principal responsável pelo renascimento dessa que é considerada uma das religiões mais antigas da humanidade. Uma das razões para isso é a relação pessoal do autor com o tema. O antropólogo relata uma exploração cativante e esclarecedora da antiga prática, na qual xamãs, durante estados alterados de consciência, visitam mundos desconhecidos e se comunicam com espíritos, invariavelmente para curar.

De certa forma, Harner segue o rastro de outro antropólogo, Carlos Castaneda, que no apogeu da contracultura durante a segunda metade da década de 1960, transformou as técnicas xamânicas em uma polêmica tese de mestrado. O livro logo depois se tornou o controverso best seller “The Teachings of Don Juan: A Yaqui Way of Knowledge”, lançado por aqui como “A Erva do Diabo” (editora Record).

Guiado por um xamã e usando substâncias psicodélicas como o cacto peiote e os cogumelos mágicos, Castaneda relata um mergulho no intrigante e misterioso universo do xamanismo mexicano. Tragado pelo universo que pesquisava, as experiências mudaram para sempre o rumo de sua vida (e de sua conta bancária, porque ele ficou milionário). Mas, acusado de inventar as histórias, também viu ir para o ralo sua credibilidade no meio acadêmico.

Pioneiro nos estudos do xamanismo

Embora O Caminho do Xamã tenha sido lançado bem depois de A Erva do Diabo, Harner (que faleceu em 2018, aos 80 anos) foi um pioneiro nos estudos do xamanismo. Ele iniciou sua jornada mais ou menos na mesma época que Castaneda, entre as décadas de 1950 e 1960.

Mas, no caso de Harner, a viagem transformadora aconteceu na Amazônia peruana com o povo shipibo-conibo. Depois ele seguiu por décadas estudando os saberes ancestrais com povos indígenas de diferentes partes do mundo. Em 1979, junto com a esposa Sandra Harner, criou a Foundation for Shamanic Studies (Fundação para Estudos Xamânicos), uma organização dedicada à preservação e promoção do xamanismo dentro de uma perspectiva contemporânea.

Em seu livro, uma espécie de guia prático de xamanismo, Harner segue a mesma proposta da sua fundação: tornar essas práticas indígenas de cura espiritual e física acessíveis ao grande público e adaptadas ao mundo moderno. Para isso, o antropólogo entrelaça experiências pessoais, mitos antigos e comparações transculturais com uma escrita simples e perspectiva equilibrada.

“Os xamãs, a quem nós, no mundo dito ‘civilizado’, chamamos de ‘curandeiros’ e ‘pajés’, são os guardiões de um notável conjunto de técnicas antigas aplicadas para alcançar e manter o bem-estar e a cura para si mesmos e suas comunidades”, descreve o autor na introdução da obra, que traz ainda diversos casos de pessoas que tiveram suas vidas transformadas pelo xamanismo.

Experiente, o antropólogo encoraja os leitores a partirem para a prática, em vez de apenas ler sobre o assunto. E para reforçar seu argumento, Harner se baseia em seu extenso trabalho de campo com povos indígenas, compartilhando histórias pessoais nos cantos mais remotos do planeta onde as tradições xamânicas ainda sobrevivem.

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