Psicodelicamente
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Apoiado por líder ayahuasqueiro, Marçal despreza uso do chá: ‘Tem doido pra tudo’
Além de exibir ignorância sobre o uso religioso da bebida amazônica, o candidato desrespeita o conhecimento indígena e as evidências científicas


Eles abraçaram o bolsonarismo e acamparam em frente a quartéis para pedir intervenção militar após a vitória de Lula em 2022. Agora, lideranças do grupo religioso ayahuasqueiro UDV (União do Vegetal) fazem campanha pelo influenciador de extrema-direita Pablo Marçal, que concorre à Prefeitura de São Paulo. Porém, em um evento público, o candidato do PRTB discutiu com uma mulher na plateia e afirmou que “as visões do chá (ayahuasca) são coisas do demônio.”
Uma das vozes a favor do influenciador dentro da UDV é a de Roberto Souto Maior, líder histórico, considerado um “Dalai Lama” do grupo religioso. Ele vem abertamente fazendo campanha pelo candidato em suas redes sociais, em posts onde pede para todos fazerem o “M”.
Roberto é integrante do Conselho da Recordação dos Ensinos do Mestre Gabriel (fundador do grupo). O órgão é responsável pela preservação da doutrina e dos ensinamentos da UDV no Brasil.
A reportagem apurou que alguns posts foram apagados posteriormente, mas ele ainda mantém em sua página no Facebook um link para um grupo chamado “Pablo Marçal”, que traz uma foto do candidato usando uma mordaça com a palavra “sistema” escrita. Embora o histórico de lideranças da UDV torne essa postura pouco surpreendente, o que chama atenção neste caso específico é o fato de o influenciador ter atacado publicamente a bebida psicoativa amazônica.
Em um evento público, gravado e disponível na internet, Marçal insultou abertamente toda a comunidade religiosa que utiliza ritualmente a ayahuasca – somente ma UDV, são mais de 20 mil. Sem falar no desrespeito a outros grupos, como o Santo Daime, diretamente citado pelo candidato, e também às dezenas de povos indígenas amazônicos, que utilizam a bebida há centenas de anos.
“Por que a galera gosta de tomar um chazinho?”, questionou Marçal à plateia, e em seguida prosseguiu: “Toda alma deseja ver o portal espiritual, e os cara [sic] não vê, então toma o chá do daime e diz ‘vi um gnomo que falou as palestra do Marçal tudo [sic] para mim, nem preciso ir lá mais’, esse gnomo é o demônio, tô te falando”.
Percebe-se no vídeo que uma mulher na plateia discordou dele e o questionou. “Ela tá querendo dar aula para mim”, retrucou Marçal imediatamente. “Eu conheço alguém que é melhor que esse chá aí, chama-se Deus vivo, que criou todos os chás”, completou em seguida, sob aplausos.
O influenciador intensificou seu discurso, alegando que não precisa conhecer o chá: “Eu posso colocar um vídeo aqui de um pai que perdeu um filho porque o filho ficou perturbado mentalmente depois de mexer com isso.” Em seguida, o candidato continuou disseminando desinformação sobre o tema.
“Agora, você que foi lá e tomou seu chazinho e ficou aparentemente normal, isso não significa que o negócio é bom. Tem doido pra tudo. Quem toma, tem dependência química. Toda pessoa que tem dependência química não cuida da própria vida, está em fuga de um estado emocional.”
O candidato estendeu os insultos a outros psicodélicos também. “Não preciso tomar chá de cogumelo, nem de santo nenhum, porque santo é escolhido, e eu já sei que sou santo.” Para quem argumenta que ele deveria respeitar os usuários do chá, ele respondeu: “Então, foda-se, vai tomar seu chá.”
A mulher na plateia insistiu em seu ponto, mas o influenciador rebateu novamente, convidando-a a se retirar: “Você é obstinada, mas ainda não entendeu que não vai falar?”
Potencial terapêutico da ayahuasca
Apesar do apoio vindo de alas bolsonaristas no circuito dos grupos ayahuasqueiros, especialmente da UDV, Marçal não hesita em demonstrar sua total ignorância sobre o uso religioso da ayahuasca. Ele ainda ofende os contextos indígenas, neoxamânicos e, sobretudo, o uso terapêutico da bebida, que, embora ainda não seja formalmente regulamentado no Brasil, já conta com sólidas evidências científicas. O uso ritual e religioso da ayahuasca é autorizado no Brasil por uma resolução do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, o Conad, em 2010.
A ayahuasca é uma mistura preparada com duas plantas amazônicas: folhas do arbusto Psychotria viridis e o cipó Banisteriopsis caapi. Suas principais substâncias são as beta-carbolinas harmina, THH (tetrahidroharmina) e harmalina e a DMT (N,N-Dimetiltriptamina). Pesquisadores explicam que o chá estimula receptores de serotonina chamados 5-HT2A, localizados em regiões do cérebro envolvidas no processamento das emoções, percepções e introspecção.
Os efeitos incluem alterações nas emoções, que podem ir de bem-estar à ansiedade, passando por percepções, como visões e maior sensibilidade aos sons e cores. De acordo com pesquisadores, essas substâncias também alteram o funcionamento de algumas áreas cerebrais envolvidas em transtornos psiquiátricos, como a depressão e vícios.
No Brasil, cientistas há décadas investigam o potencial terapêutico da ayahuasca. Em São Paulo, o médico Dartiu Xavier, há quase 30 anos, criou um grupo para pesquisar a bebida amazônica e outros psicodélicos na Universidade Federal de São Paulo. Um estudo atualmente em andamento avalia o uso do chá no tratamento de alcoolismo. A pesquisa deriva de investigações anteriores que já apontavam para benefícios do uso do chá para o tratamento de dependência.
Outro trabalho consistente de investigação da substância aconteceu no Nordeste, em Natal, no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O grupo liderado pelo neurocientista Dráulio Barros de Araújo foi o primeiro no mundo a avaliar um psicodélico clássico, no caso a ayahuasca, para tratamento da depressão em um estudo duplo-cego randomizado, o chamado padrão-ouro das pesquisas clínicas. Ou seja, quando pesquisadores e pacientes desconhecem quem tomou a substância. A pesquisa apresentou resultados promissores.
E, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo), o neurocientista Rafael Guimarães dos Santos, também há décadas, conduz pesquisas para testar a eficácia terapêutica da bebida psicodélica ayahuasca para problemas de saúde mental.
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