Reportagens

DMT, a ‘molécula do espírito’ que pode virar tratamento para depressão

Pesquisas pioneiras que investigam o potencial antidepressivo de psicodélicos naturais, como ayahuasca e jurema, avançam no Brasil

Pobreza, violência, traumas, solidão, excesso de trabalho, vícios, sedentarismo. São muitas as causas da depressão, problema que assola o Brasil e o mundo. Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde, o transtorno mental será uma das doenças mais comuns do planeta até 2030. Faltam medicamentos para tratar uma multidão de deprimidos, e a ciência corre em busca de novos tratamentos. Uma das alternativas para casos mais severos pode estar na DMT (N,N-Dimetiltriptamina), um poderoso psicodélico presente nas bebidas psicoativas ayahuasca e jurema.

A DMT é uma substância do grupo das triptaminas, e um dos únicos psicodélicos endógenos conhecidos até o momento. Além de estar presente em raízes, caules e folhas de diversas plantas, também é produzido pelo organismo de seres humanos e de animais mamíferos, marinhos e anfíbios. Porém, sabe-se ainda muito pouco sobre o misterioso composto, também chamado de “molécula do espírito”.

No Brasil, um dos trabalhos mais consistentes de investigação da substância acontece atualmente no Nordeste, em Natal, no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O grupo foi o primeiro no mundo a avaliar um psicodélico clássico no tratamento da depressão em um estudo duplo-cego randomizado, o chamado padrão-ouro das pesquisas clínicas. Ou seja, quando pesquisadores e pacientes desconhecem quem tomou a substância testada ou o placebo (sem efeitos). Conduzido em parceria com o Hospital Universitário Onofre Lopes, a pesquisa apresentou resultados promissores.

A reportagem da série Yes, nós temos ciência psicodélica viajou até Natal para conhecer de perto os destemidos cientistas que ajudaram de maneira substancial a colocar o Brasil em destaque no ranking global de pesquisas neste instigante e controverso campo de estudos.

“Nosso grupo vem trabalhando há mais de 15 anos com substâncias psicodélicas para o tratamento da depressão”, conta a pesquisadora Fernanda Palhano, vice-coordenadora da equipe criada pelo físico e neurocientista Dráulio de Araújo.

Foto: Anastásia Vaz

Os primeiros estudos, segundo Palhano, envolverma a ayahuasca, bebida psicodélica usada há milhares de anos por povos originários amazônicos e, desde o início do século passado, por grupos religiosos brasileiros, como o Santo Daime e a União do Vegetal. O chá é preparado a partir da combinação de duas plantas: um cipó conhecido como mariri e folhas de um arbusto chamado chacrona. Suas principais substâncias são as beta-carbolinas harmina, THH (tetrahidroharmina) e harmalina e a DMT (N,N-Dimetiltriptamina).

“Um passo na direção do entendimento do potencial antidepressivo da ayahuasca é estudar o efeito isolado da DMT, utilizada por uma outra via”, explica a pesquisadora. Essa foi a maneira encontrada para responder uma das indagações que acompanha o grupo desde os experimentos iniciais: por que o misterioso chá amazônico pode melhorar a saúde mental?

Uma curiosidade sobre a DMT é que se ela for ingerida isoladamente não produz nenhum efeito psicodélico, porque nosso organismo possui enzimas que degradam a molécula, impedindo que ela chegue até a corrente sanguínea e ao sistema nervoso central. No caso da ayahuasca, existem substâncias que inibem essa enzima. Outra forma de obter os efeitos é pela via inalada.

Na ocasião da entrevista, o grupo havia acabado de concluir a primeira etapa de um estudo clínico por vaporização com DMT extraída da jurema-preta (Mimosa tenuiflora). A planta, nativa e abundante no Nordeste brasileiro, também possui um histórico de uso ritual indígena e em cultos religiosos afro-brasileiros.

“A casca da raiz da jurema é a planta mais rica em DMT que se tem conhecimento”, conta Palhano.

Além de entender melhor o funcionamento da substância, a primeira fase do estudo, que usou a DMT isolada por via inalada em voluntários saudáveis, permitiu também reduzir o tempo da experiência. Esse é um detalhe importante para que o uso dos psicodélicos possa se tornar tratamentos ou medicamentos acessíveis para grande parte da população. A acessibilidade é um dos objetivos centrais da pesquisa e uma preocupação constante do grupo, reforça a pesquisadora.

Palhano explica que as terapias com psicodélicos demandam uma equipe multidisciplinar, com psiquiatra, psicólogo, enfermeiros, e outros profissionais, que precisa ficar em torno do paciente durante todo o tempo da experiência. No caso da ayahuasca isso pode variar, de acordo com a dosagem, em torno de quatro horas.

Esse formato torna o tratamento caro e particularmente desafiador para países como o Brasil. Uma das perguntas que o atual estudo busca responder é se a redução no tempo de duração da experiência altera os efeitos que foram observados nas pesquisas com ayahuasca.

O físico e neurocientista Dráulio de Araújo. Foto: Arquivo

Projeto DMT

O trabalho com o primeiro grupo do projeto DMT do Instituto do Cérebro da UFRN aconteceu de junho a agosto de 2022, 30 voluntários participaram dessa etapa do estudo. Um dos critérios de seleção foi que o participante já tivesse passado por alguma experiência com o psicodélico, por exemplo, com a bebida ayahuasca.

Mas, como funciona uma pesquisa psicodélica? No caso do recente estudo com DMT, Palhano conta que os selecionados foram submetidos individualmente a duas doses diferentes da substância, uma baixa e outra mais alta. Antes de utilizar o psicodélico, os pacientes tiveram sinais vitais monitorados, como frequência cardíaca, pressão arterial e oximetria. Todos usaram também uma touca para medir os sinais de eletroencefalografia.

Outro monitoramento foi feito a partir da coleta de sangue para observar marcadores bioquímicos e medir a concentração de DMT no sangue ao longo da sessão. A primeira dose, mais suave, teve a função de ajudar o paciente a se familiarizar com os efeitos.

Depois, os voluntários que estavam de acordo receberam uma segunda dose maior, na qual puderam sentir os efeitos psicodélicos mais intensos e conhecidos, como alterações da percepção, visual e auditiva, insights. Segundo a pesquisadora da UFRN, nas duas dosagens, as sensações agudas duram cerca de 15 minutos.

Após cessados os efeitos, os pacientes conversaram com os psicólogos, para contar como foi a experiência, o que sentiram, se as músicas que ouviram durante a sessão ajudaram ou não, entre outros detalhes.

Terapias com psicodélicos demandam uma equipe que precisa ficar em torno do paciente. Foto: Arquivo

Depois da integração com os psicólogos, os participantes responderam a um questionário chamado HRS (Hallucinogen Rating Scale), em português, Escala de Classificação Alucinógena, formado por 100 perguntas que investigam a experiência em diferentes esferas, cognição, percepção, corpo, afetos e outros.

O questionário HRS usado no projeto DMT pela equipe da UFRN, foi criado pelo psiquiatra da Universidade do Novo México, em Albuquerque (EUA), Rick Strassman, autor de um estudo que em 1990 foi responsável por abrir novamente as portas das pesquisas com psicodélicos, fechadas desde 1970.

Durante cinco anos, Strassman administrou cerca de 400 doses de DMT para 60 voluntários saudáveis. “O projeto produziu um vasto conjunto de dados biológicos e psicológicos”, escreveu o pesquisador no livro “DMT: a Molécula do Espírito” (editora Pedra Nova). A publicação também inspirou um documentário homônimo lançado em 2010 dirigido por Mitch Schultz (disponível na internet).

Antes de irem embora, os pacientes da pesquisa com DMT realizada na UFRN foram novamente avaliados por um psiquiatra para apurar possíveis efeitos colaterais. Acompanhamentos posteriores virtuais e presenciais também foram realizados pela equipe dentro do período de um mês após a sessão com DMT.

“Independentemente da dose, os efeitos variam muito,são subjetivos e muito particulares”, conta a cientista. “Teve voluntários que usaram 15 miligramas e descreveram sensações mais intensas do que outros que receberam 40 miligramas”. O estudo avaliou efeitos sobre a ansiedade e qualidade de vida, aspectos que são importantes mesmo para pessoas que não têm nenhum transtorno.

O grupo de cientistas, neste momento, se prepara para a segunda fase da pesquisa, ainda sem data para iniciar. Na nova etapa, a DMT não será mais extraída da jurema, mas fornecida pela empresa canadense Biomind Labs, que patrocina o estudo na UFRN. E os voluntários serão pacientes com depressão severa, que não respondem aos tratamentos convencionais.

Fernanda Palhano, pesquisadora da UFRN. Foto: Arquivo

Efeitos antidepressivos da ayahuasca

O neurocientista Dráulio de Araújo conta que desde seus primeiros estudos com a bebida ayahuasca, os resultados chamaram a atenção. Em ensaios “open label” (quando pesquisadores e voluntários sabem qual a substância administrada), realizados no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, onde ele trabalhava, os pacientes apresentaram melhoras um dia após receberem uma única dose da substância, condição que se manteve por dias.

Depois, já na UFRN, os resultados obtidos no primeiro estudo controlado por placebo com ayahuasca, também foram animadores. A pesquisa, realizada durante três anos, entre 2014 e 2016, e publicada em 2018, testou a ayahuasca em pacientes com depressão resistente a tratamentos.

Participaram 29 voluntários. Entre as 15 pessoas que beberam ayahuasca, houve melhora logo após um dia, e que se sustentou por sete dias. No outro grupo, com 14 pacientes que receberam placebo, também se observou um recuo nos sintomas depressivos, porém que se manteve por apenas um dia.

Mas, afinal, de onde vem os efeitos antidepressivos da ayahuasca? Araújo afirma que uma das origens está na experiência subjetiva que a pessoa tem durante a experiência. “São características do que você vivenciou que levam a um efeito terapêutico”. Segundo o pesquisador, alguns pacientes com depressão, ao final, relataram uma vivência equivalente a alguns anos de psicoterapia.

“Por outro lado, a gente tem visto que algumas características ligadas a processos fisiológicos gerais também tem relação com essa melhora”, acrescenta Araújo.

Resultados das pesquisas, publicados no Journal of Psychopharmacology, mostraram que os pacientes que beberam ayahuasca apresentaram diminuição do perfil inflamatório em relação aos que tomaram o placebo.

“Há uma teoria bastante aceita na literatura que a depressão é uma doença que tem várias características inflamatórias, um exemplo disso é a fibromialgia, que é um tipo de depressão que acomete muitas mulheres, elas sentem dores em certas partes do corpo bastante específicas”, explica Araújo.

Pesquisas analisam DMT para tratamento contra a depressão. Foto:

Para ele, isso leva a crer que existe uma relação muito clara entre inflamação e depressão. “O que a gente observou, por exemplo, nos nossos trabalhos é que os pacientes que mais reduziram esses marcadores de inflamação, depois da sessão de ayahuasca, foram os pacientes que mais melhoraram do quadro depressivo”.

Traduzindo em miúdos, o neurocientista explica que existe uma relação entre a melhora e uma alteração no sistema biológico de uma maneira mais abrangente, que leva ao benefício terapêutico. Para o pesquisador, isso abriu caminhos novos na pesquisa de psicodélicos, porque apontou aplicações que podem ir para além dos transtornos mentais.

Entretanto, o pesquisador ressalta que os resultados não indicam que a pesquisa psicodélica esteja avançando para uma medicalização da ayahuasca. O que ele acha mais provável é alguma combinação com a DMT.

“Acredito que isso em algum momento vai ser utilizado como um produto”, prevê Araújo.

Por outro lado, nada impede que a ayahuasca venha a se tornar um procedimento terapêutico, complementa o especialista. Ou seja, que o paciente vá até um hospital ou uma clínica para fazer essa intervenção com a bebida de uma maneira guiada e segura, e que depois essa experiência possa ser integrada a uma terapia. “O que não deve acontecer é de você poder comprar numa farmácia”, conclui Araújo.

A série Yes, nós temos ciência psicodélica, publicada por CartaCapital em parceria com a Psicodelicamente, com apoio do Instituto Serrapilheira, vai contar a curiosa e intrigante história da pesquisa científica com substâncias psicodélicas no Brasil. 

Carlos Minuano

Carlos Minuano
Editor da Psicodelicamente, revista digital independente de jornalismo sobre psicodélicos

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