Psicodelicamente

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Por que o uso terapêutico da ayahuasca ainda não é autorizado no Brasil?

Na prática, tratamentos para dependência já ocorrem de forma ‘off label’ no circuito underground de grupos religiosos e xamânicos

Foto: iStock
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Quase todo mundo conhece alguém que sofre por causa do uso excessivo de alguma droga, como cocaína, crack e mais recentemente a K9, entre tantas outras. Mas, também não precisa procurar muito para encontrar relatos contundentes e plausíveis de pessoas que conseguiram sair do tenebroso buraco da dependência química através da ayahuasca.

A bebida psicodélica amazônica é usada há milhares de anos por povos indígenas e desde a primeira metade do século passado por grupos religiosos, como o Santo Daime e UDV (União do Vegetal).

São nesses espaços undergrounds que os “tratamentos” acontecem. E por mais improvável que pareça aos conservadores, com ótimos resultados. Diante disso, uma pergunta que sempre me faço é:

Por que o uso terapêutico do chá psicoativo ainda não é autorizado no Brasil?

Uma das razões é porque a ayahuasca (também chamada de oaska, daime, nixipae) contém DMT (N,N-Dimetiltriptamina), substância proibida no Brasil. Mas, sabe-se que a razão por trás da proibição é política e ultrapassada. Pesquisas acumulam evidências de que a bebida pode ser usada com bons resultados para tratar dependência, depressão, entre outros transtornos.

E a fama do misterioso chá amazônico para o tratamento de vícios em nível ‘hard’ há tempos corre o mundo. Nas últimas páginas do clássico da contracultura “Junky” (Companhia das Letras), publicado pela primeira vez em 1952, o escritor beatnik William S. Burroughs revela que já andava lendo sobre uma droga chamada yage (o nome da ayahuasca na Colômbia) e anuncia que irá se mandar para a selva colombiana. E foi exatamente o que ele fez.

O escritor, que enfrentava uma dependência braba de heroína, viajou pela selva amazônica na década de 1950 e contou detalhes de sua aventura em outro livro, não tão conhecido, “Cartas do Yagé” (L&PM), lançado pela primeira vez em 1963. Até onde sei, após beber algumas vezes ayahuasca com curandeiros indígenas na Colômbia e no Peru, Burroughs conseguiu se afastar das drogas pesadas por alguns anos.

Cipó dos espíritos   

No Brasil, cientistas há anos investigam o potencial do famoso chá das visões, também conhecido como ‘cipó dos espíritos’ (tradução do seu nome quéchua ‘ayahuasca’). O nome é uma alusão ao propagado poder da bebida de transportar as pessoas para o mundo espiritual onde os xamãs realizam suas curas.

Na opinião do psiquiatra Dartiu Xavier, que investiga as propriedades da bebida psicodélica desde o início da década de 1990, a aprovação do uso terapêutico da ayahuasca enfrenta pelo menos quatro problemas principais: a falta de pesquisa, a carência de investimento para novos estudos, a burocracia, e – o mais grave – uma mentalidade científica retrógrada. “Sou um cientista completamente fora da curva no Brasil”, desabafa o especialista.

Há quase 30 anos, Xavier criou um grupo para pesquisar ayahuasca e outros psicodélicos na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), mas conta que durante muito tempo ele e sua equipe quase não conseguiram se mexer. “Era tudo tabu, pesquisávamos quase escondido”. Mas o médico segue na ativa. No momento, inicia um novo estudo com ayahuasca, desta vez para o tratamento de alcoolismo.

Xavier explica que o estudo atual deriva de investigações anteriores que já apontavam para benefícios do uso da ayahuasca para o tratamento de dependência. “Em estudos observacionais com adolescentes percebemos que jovens que usavam ayahuasca comparados com os que não usavam tinham um consumo muito menor de álcool.”

Depois, relatos de pessoas adultas com problemas de alcoolismo que abandonaram o uso compulsivo da bebida após entrar em algum grupo ayahuasqueiro também chamaram a atenção. “Começamos então a estudar as propriedades do chá e o que acontece em relação ao álcool.”

Além das investigações cientíticas, Xavier participou do processo que garantiu a liberdade do uso religioso da ayahuasca, que chegou a ser proibida no Brasil na década de 1980. Embora a resolução do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas), de 2010, tenha se limitado a autorizar o uso da substância em rituais religiosos, o documento acenou para uma utilização terapêutica, desde que respaldada em pesquisas científicas.

“O reconhecimento da legitimidade do uso terapêutico da ayahuasca somente se dará após a conclusão de pesquisas que a comprovem”, orienta a resolução do Conad. Mas, se já existem evidências científicas, porque não facilitar o acesso a essa terapia para tentar combater problemas como o abuso de drogas na Cracolândia em São Paulo?

Ayahuasca no tratamento da dependência

No Peru, por exemplo, existem modelos terapêuticos que combinam a medicina tradicional indígena da ayahuasca com a psicoterapia ocidental e outras práticas integrativas para tratar a dependência. E tudo amparado por estudos científicos.

Segundo o advogado Emílio Figueiredo, conselheiro do Conad, isso já poderia estar acontecendo aqui. “É possível criar espaços clínicos específicos para esse tratamento, mas tudo que envolve a Cracolândia é rodeado de muitos gargalos.”

Enquanto isso, o problema só cresce. De acordo com um levantamento feito pela Prefeitura de São Paulo, a média diária de usuários de drogas na Cracolândia, no centro da capital, subiu 27,8% de janeiro a julho de 2023. Nesse período, cerca de 1.200 pessoas foram flagradas todos os dias na região.

Dividindo o cenário, outra discussão tem ganhado corpo. Afinal, para onde caminham no Brasil as pesquisas com psicodélicos? Há no ar uma enorme expectativa em relação à terapia com MDMA. A droga conhecida como ecstasy está perto de ser aprovada nos EUA para tratar traumas. Entretanto, o protocolo que está sendo desenvolvido por lá é muito caro e de difícil aplicação no Brasil.

Não seria o caso do Brasil, com seu histórico de uso ritual indígena e religioso da ayahuasca, e com importantes pesquisadores nessa área de estudo, assumir o protagonismo em um debate sobre uma outra renascença psicodélica, norteada por uma perspectiva sul global, amazônica e indígena?

Na opinião do pesquisador da Unifesp, Dartiu Xavier, o uso terapêutico da ayahuasca depende de mais estudos, inclusive para avaliar o uso ritual que já tem sido usado como um tratamento ‘off label’ para dependência. O médico conta que chegou a tentar financiamento para um estudo que pretendia comparar quem tomava num centro médico e quem tomava num setting ritualístico. Mas não foi aprovado.

Uma somatória de fatores embolam o meio de campo, mas para Xavier o principal obstáculo ainda é o preconceito. “Já olham torto quando falamos em psicodélicos, querer avaliar uma possível eficácia terapêutica do uso ritual religioso deixa o pessoal mais com o pé atrás ainda”, comenta o médico.

“Quem domina a academia no Brasil são os cientistas reacionários”, prossegue o pesquisador. “Eu acho que o pessoal pensa muito pequeno”. Enquanto isso, os efeitos da proibição batem à porta do médico constantemente. “Chegam pacientes no meu consultório falando estar deprimidos, querendo usar ayahuasca, ou psilocibina.”

Para ele, no Brasil o cenário de uso da ayahuasca poderia ser diferente. “Daria para acelerar muito, temos todo o know-how de séculos de experiência, é uma coisa nossa, e um patrimônio da humanidade”.

O conselheiro do Conad, o advogado Emílio Figueiredo, concorda que já passou da hora de trocar de marcha. “Considerando que já existem estudos, é o momento da retomada do debate para poder regulamentar também o uso terapêutico da ayahuasca”.

Mas, apesar do consenso entre pesquisadores, especialistas e uma urgência latente, não há nenhum sinal num horizonte próximo de que algo seja feito nessa direção. Estamos esperando o quê? Possivelmente, a benção da bigpharma.

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