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Por que evangélicos são alvo e fonte de tantas mentiras?

Evangélicos brasileiros têm revelado a desobediência a uma das orientações que permeiam o livro sagrado cristão: não mentir

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) discursa durante evento da igreja evangélica 'Church of All Nations' na Flórida, Estados Unidos — Foto: Reprodução
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Apesar de serem caracterizados, histórica e culturalmente, pelo apego à Bíblia, evangélicos brasileiros têm desobedecido intensamente nos últimos anos uma das principais orientações do livro sagrado cristão: não mentir.

Nos muitos textos sobre o tema, é enfatizado que Deus abomina a mentira, como no trecho de Provérbios 6.16-19, que se torna uma síntese dos outros vários.

“Há seis coisas que o Senhor odeia, sete coisas que ele detesta: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que traça planos perversos, pés que se apressam para fazer o mal, a testemunha falsa que espalha mentiras e aquele que provoca discórdia entre irmãos.”

Apesar da nítida orientação contida no livro tão amado e ressaltado por evangélicos, o que temos acompanhado no Brasil, pelo menos desde 2018, é um conjunto de posturas que favorece a circulação e a propagação de mentiras entre este grupo.

Estas posturas se configuram em um ponto inicial que é a formulação do conteúdo mentiroso dentro do próprio ambiente evangélico. Segundo o acompanhamento realizado desde a pesquisa Caminhos da Desinformação: Evangélicos, Fake News e WhatsApp no Brasil até o que é empreendido pelo Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias, pastores, pastoras, presidentes de igrejas, bispos e outra autoridades, influenciadores digitais, entre artistas gospel, políticos evangélicos e outras personagens que ocupam o espaço público e emergem como celebridades midiáticas, criam conteúdo falso e enganoso e o propagam em seus espaços nas mídias sociais dos aplicativos populares das big techs.

Nesta postura, parece haver uma intenção, ou seja, elaboração deliberada da mentira, para captar apoios de natureza demagógica nas comunidades evangélicas a temas e pautas de cunho ideológico. Entre elas esteve, por exemplo, a oposição a procedimentos científicos, como as medidas sanitárias aplicadas para a prevenção da covid-19 nos anos de 2020 e 2021. Está também a negação do valor da vacinação na proteção contra doenças e a aversão aos direitos de pessoas que não aplicam em suas vidas a orientação dos costumes evangélicos no tocante à sexualidade.

É possível contabilizar neste grupo material falso contra o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral e sobre fraudes em urnas eletrônicas, por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro durante o processo eleitoral 2022, entre outros temas, como foi o caso da campanha contra o Projeto de Lei 2630/2020, denominado popularmente de Lei das Fake News. A noção de que a chamada Lei das Fake News é uma lei de censura criada pelo atual governo e pelas esquerdas e o STF para silenciar as igrejas e para impedir críticas públicas a políticos, foi fartamente disseminada por estas personagens citadas acima.

Outra postura é o alinhamento à mentira da parte deste grupo e de lideranças que estão em nível intermediário (pastores e pastoras e pessoas que têm funções de destaque nas diversas comunidades evangélicas do Brasil afora) com a replicação (o compartilhamento) de conteúdo produzido por terceiros. Boa parte destas mensagens não tem conteúdo religioso exclusivo, mas traz temas como o do suposto cerceamento de liberdade de expressão, o negacionismo em relação à ciência (em especial na área da saúde), a ameaça comunista e de ativistas feministas e LGTBI+, e são repercutidos por afinidade/alinhamento ideológico.

Produtores da indústria da desinformação, que não são religiosos, mas querem captação de apoio para interferir em temas de interesse público e obter vantagens (políticas ou financeiras), conseguem assessoria de lideranças e influenciadores evangélicos para produzirem material específico destinado ao grupo. Oferecem memes, cards, áudios, vídeos, com linguagem que cria vínculos emocionais, com textos bíblicos, por exemplo. No caso da desinformação em torno do PL 2630, tornou-se conhecido que a Câmara Brasileira de Economia Digital, associação brasileira que reúne empresas como Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp), Google e TikTok produziu um documento entregue a deputados afirmando que o projeto de lei proibiria a livre expressão de cristãos nas mídias sociais, especialmente a publicação de certos versículos bíblicos. O conteúdo falso foi disseminado por personagens como o deputado federal da Igreja Batista Deltan Dallagnol.

A postura da assimilação, por evangélicos comuns, as pessoas que participam cotidianamente das igrejas, é a que torna este grupo um forte propagador, ou “traficante” de desinformação. Fiéis evangélicos são os destinatários de todo este conteúdo. Tanto as lideranças e influenciadores religiosos, como os produtores da indústria da desinformação, buscam afetar estas pessoas, como mencionado acima, lançando mão do imaginário evangélico sedimentado em quase dois séculos de pregação e atuação predominantes entre grupo religioso no Brasil.

Este imaginário é moldado por elementos-chave como a superação perseguição religiosa, algo que absolutamente não existe no país contra cristãos, mas que é acionado pela imagem bíblica da perseguição de Roma aos primeiros cristãos; o enfrentamento de inimigos, as hostes do mal (Satanás e seu séquito) que atuam contra a propagação do Evangelho e o crescimento das igrejas; a pureza do corpo, em especial no cultivo de uma sexualidade padronizada no ocidente como heteronormativa, guardada para o casamento monogâmico para a geração de filhos e prosseguimento no povoamento da Terra.

Além de assistirmos a esta instrumentalização da religião para campanhas públicas em bases falsas e enganosas, vemos também o uso da palavra, por parte de líderes, para perseguir e atacar quem se coloca em oposição a estas posturas dentro das igrejas. Não são poucas as pessoas classificadas como não cristãs, traidoras da igreja, simplesmente por denunciarem o uso da mentira para capturar apoios.

Fica o desafio de pessoas e grupos evangélicos retomarem a Bíblia tão amada e um dos destacados ensinamentos de Jesus sobre conhecer a verdade, tal como registrado no Evangelho de João, fartamente instrumentalizado em discursos políticos do ex-presidente que deixou o cargo em 31 de dezembro passado, a mentira é exposta como filha do inimigo de Deus, o Diabo. Jesus diz, aos que se colocavam em oposição às suas ações, e que apregoavam mentiras neste debate público: “Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira” (João 8.44).

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