Observatório da Economia Contemporânea

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Uma nova dinâmica do comércio mundial: a importância das cadeias produtivas internas

Com o conflito entre Rússia e Ucrânia, acirraram-se as sanções econômicas e a necessidade cadeias produtivas internas mais densas e diversificadas

Um container no terminal de Hamburgo (Fotos: iStock)
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A economia mundial experimentou nas três últimas décadas um intenso processo de globalização, marcado por modificação de paradigma do sistema produtivo internacional. Particularmente, do ponto de vista da dinâmica produtiva e do comércio internacional, o sistema produtivo tradicional, com uma ampla gama de indústrias, deixou de ser restrito ao âmbito nacional para estar cada vez mais envolvido em uma rede de negócios de caráter fragmentado entre empresas e disperso entre países em escala regional e global.

Sob o comando das transnacionais materializou-se processos de desverticalização (outsourcing) e deslocalização (offshoring) produtiva. Com isso, o processo de manufatura foi fatiado, desde a concepção do produto, passando por insumos e componentes, até o consumo final, com as etapas intermediárias ocupando mais de dois terços do comércio internacional e passando a ser mais importantes do que a etapa final do processo produtivo. Esse processo ficou conhecido como cadeias globais de valor (CGVs). 

Uma das crenças da dinâmica do comércio internacional via cadeias globais de valor reside seria que ela proporcionaria um equilíbrio maior na divisão internacional do trabalho, criando uma suposta relação mais simétrica entre as nações na economia internacional.

A partir dessa crença, muitos autores se apressaram em afirmar que política industrial não fazia mais sentido nenhum, e que a melhor política para o desenvolvimento econômico dos países era a implementação de políticas de abertura – comercial e financeira – que integrasse os países as cadeias globais de valor. 

Três evidências do comércio mundial mostram algumas problemáticas dessa narrativa: a) primeiro, o processo de distribuição das CGVs tem se constituído de forma assimétrica, com algumas regiões apresentando ganhos com sua inserção no comércio mundial via CGVs, enquanto outros países e regiões ficam à margem desse processo; b) segundo, predomina uma lógica de comércio intrarregional, contrário aos princípios de livre comércio e abertura para novas relações comerciais; c) terceiro, após a crise da Covid-19 e agora com o conflito entre Rússia e Ucrânia, intensificam-se cada vez mais políticas de fortalecimento de cadeias produtivas internas, com os países buscando mais soberania e menor dependência no comércio mundial, apontando para o enfraquecimento da lógica do comércio via CGVs.

Em relação à problemática dos desequilíbrios nas formas de inserção dos países nas cadeias globais de valor, Estevadeordal, Suominen e Blyde (2012) e um estudo da OCDE (2013), mostram que a reestruturação da produção via CGVs tem se constituído de forma assimétrica, com algumas regiões avançando substancialmente em sua inserção no comércio mundial, como é o caso dos países da região da Ásia, Europa e América do Norte, enquanto outros países de regiões como África e América Latina ficam à margem desse processo, como é o caso do Brasil.

A outra problemática que ficou em evidência com as CGVs é o fato de que o comércio tem se tornado cada vez mais intrarregional, fragilizando assim o princípio de que o comércio tem um caráter mais global, com o predomínio do livre comércio beneficiando de forma mais equitativa todas as nações. Os próprios indicadores da Organização Mundial do Comércio (OMC) deixam em evidência que o comércio internacional é predominantemente intrarregional. Em 2017, 70% do comércio da União Europeia era feito entre os próprios países da região. Na Asean, esse indicador era de 67%; no Nafta, de 50%; e no Mercosul, de 20%.

O terceiro elemento que aponta para as fragilidades da crença no comércio via CGVs é sobre políticas industriais. Ao contrário do que muitos defendem, as políticas industriais nunca deixaram de existir e foram justamente os países que mantiveram suas políticas industriais que lograram maiores êxitos no comércio mundial via CGVs. Além do mais, vários acontecimentos recentes apontam para um processo de retomada de fortalecimento de cadeias produtivas internas e enfraquecimento do comércio pela lógica das CGVs.

Já com crise de 2008-2009 da economia mundial muitos países adotaram medidas de conteúdo local com a finalidade de fortalecer seu mercado interno para superar a crise econômica. O Peterson Institute for International Economics (PIIE) registrou um grande aumento de políticas domésticas industriais e de medidas de conteúdo local depois da crise financeira internacional de 2008. 

A Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) reconheceu que o comércio via cadeias globais de valor vem perdendo força desde a crise de 2008, tendência que se acelera acentuadamente com a crise deflagrada pela pandemia (UNCTAD, 2020). De acordo com a Unctad, o sistema global de produção internacional está passando por uma tempestade perfeita com a crise causada pela pandemia, com desafios decorrentes da nova revolução industrial, o crescente nacionalismo econômico e o imperativo da sustentabilidade. Existem no mundo hoje três megatendências que impulsionam a transformação da produção internacional:

1) Novas tecnologias com a Indústria 4.0 revolução industrial — a aplicação de novas tecnologias nas cadeias produtivas das empresas multinacionais globais tem consequências de longo alcance para a configuração das redes internacionais de produção. O ponto crítico é o crescente processo de automação, com disponibilidade de robôs industriais mais baratos, que tem o potencial de reverter a tendência da fragmentação produtiva, reduzindo drasticamente a vantagem competitiva dos centros de fabricação de baixo custo nos países em desenvolvimento. 

2) Governança econômica global — há uma tendência de crise na cooperação multilateral, com o fortalecimento de soluções regionais e bilaterais, assim como o crescimento de medidas de protecionismo, com a finalidade de fortalecer cadeias produtivas locais e nacionais. 

3) Desenvolvimento sustentável — o mundo passa pela implementação de um amplo leque de medidas de sustentabilidade, incluindo medidas de adaptação às mudanças climáticas, e de mitigação destas, nas operações globais das empresas multinacionais; 

Além do mais, importante ressaltar que a crise da Covid-19 deixou mais em evidência o papel estratégico que o setor de semicondutores tem na economia mundial, principalmente diante da sua escassez, paralisando atividades industriais, como o setor automobilístico. 

Esse cenário de transformação na economia mundial pode ser identificado nas ações dos países no mundo, intensificando suas medidas de políticas industriais e de inovação. Na verdade, Medeiros (2019) mostra que nos EUA a política industrial sempre esteve concentrada no Departamento de Defesa (Darpa), no ministério e institutos de saúde (National Institutes of Health) e no Ministério de Energia (Arpa-E), principalmente por meio de recursos, projetos e laboratórios financiados pelo governo, fortalecendo, por exemplo, seu complexo acadêmico-industrial-militar, o qual é responsável pela criação de novos setores e atividades, e sempre se fez presente a busca por alternativas energéticas e tecnologias verdes, ampliando assim esforços públicos de inovação. Mais recentemente, o Plano Biden deu mais relevância ainda a política de fortalecimento de cadeias de produtivas internas, principalmente com a ideia do “Made in all of America, by all of America’s worker”. Um dos principais setores prioritários da política industrial é de semicondutores. São US$ 52 bilhões de recursos para estimular a produção local só para o setor de semicondutores.

Na União Europeia, como resultado da preocupação de fortalecer a estrutura produtiva industrial na região, houve também do European Chips Act, com o anúncio de investimento de US$ 48 bilhões no desenvolvimento do setor de semicondutores, implementando uma estrutura para aumentar a capacidade de produção para 20% do mercado global até 2030. 

A Alemanha é apontada como o país que deu o pontapé inicial para os grandes projetos de políticas industriais para o avanço da indústria 4.0. O país já vem adotando uma abrangente política industrial, com a finalidade de criar fábricas inteligentes por meio de sistemas cyber physical, integrando informação (big data) com robôs, internet das coisas e manufatura aditiva, de forma a concentrar mais e mais sua especialização produtiva na capacidade de inovação.

A França, com o Presidente Macron, anunciou investimentos de 30 bilhões de euros para reindustrializar o país.  Só para o setor energético para promover energias renováveis e alcançar mais soberania na oferta de energia, anunciou também mais de 50 bilhões de euros de investimento.

Sobre as experiências dos países asiáticos em manter de forma contínua políticas industriais, vários acontecimentos recentes têm deixado mais evidente como esses países têm interpretado o cenário da covid-19 e a relevância da política industrial. 

Um fato emblemático do enfraquecimento dessa lógica e da necessidade de retomada de fortalecimento das cadeias produtivas internas, foi uma entrevista do então primeiro-ministro do Japão Yoshihide Suga, o qual afirmou que o maior ensinamento da crise da Covid-19 era que a fragmentação excessiva de cadeias de produção no Japão mostrou como o país estava vulnerável a decisões externas, em particular da China. Yoshihide Suga defendeu, explicitamente, a ideia de que o país precisa acabar com a forte dependência e “trazer a produção de volta para o Japão” (SHIGETA, 2020). 

Nesse sentido, o Japão lançou um programa de subsídios de 220 bilhões de ienes (US$ 2,08 bilhões) para encorajar as empresas japonesas a levarem suas fábricas de volta para o país, e alocou 23,5 bilhões de ienes adicionais para financiar a movimentação da produção para o Sudeste Asiático. Além do mais, acabou de anunciar um investimento de mais de US$ 87 bilhões em fundos destinados para os setores de inovação, inclusive semicondutores.

Na Coreia do Sul, o programa de reestruturação produtiva por meio da centralização dos chaebols, introduzido a partir da crise de 1997, retomou em novas bases a política industrial. Além do mais, o “New Deal coreano” (HYUNJUNG, 2020), implementado para enfrentar a crise causada pela covid-19 com um orçamento inicla de 10% do PIB (US$ 137 bilhões), tem como principal elemento o investimento em setores de inovação, setores relacionados à sustentabilidade e proteção e geração de empregos, com a finalidade de fortalecer a estrutura produtiva do país e também enfrentar a concorrência no mundo, em particular a da China. 

É bem possível que, do ponto de vista de proposta de política industrial e de inovação, o plano que chamou mais atenção do mundo tenha sido o Made In China 2025 (MIC2025), anunciado em 2015. De acordo com Wang, Wu e Chen (2020), o MIC2025 foi o primeiro passo para transformar a China em uma potência industrial líder mundial e foi considerado a versão chinesa da Indústria 4.0, principalmente a partir do modelo do plano “Industry 4.0” da Alemanha. 

Agora emerge a guerra entre Rússia e Ucrânia, acentuando a tendência de maior protecionismo e de busca por maior autonomia nas cadeias produtivas locais. Como sequência das suas políticas industrial e de inovação, a China lançou o 14º Plano Quinquenal, dado relevância mais ainda ao papel da inovação na modernização geral da China, com busca da autossuficiência e o autoaperfeiçoamento em C&T atuando como suporte estratégico para o desenvolvimento nacional, orientados para a vanguarda mundial em C&T, para os principais campos de conflitos econômicos diante do cenário geopolítico atual e para as principais necessidades da nação (MOREIRA, 2021).

Desde a crise de 2008 há uma tendência de enfraquecimento da lógica das cadeias globais de valor e ascensão de políticas que têm o objetivo de fortalecimento de cadeias produtivas nacionais, principalmente com a finalidade de garantir a soberania nacional. Esse cenário tem se acentuado com a crise provocada pela covid-19 e agora com a Guerra entre Rússia e Ucrânia. Tudo indica que os países que não tiverem estratégias e políticas para fortalecer suas estruturas industriais internas e nacionais correm sérios riscos de ficar à margem das fronteiras produtivas e tecnológicas, e também mais vulnerável às crises de insumos na economia mundial. 

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