Observatório da Economia Contemporânea

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Pressões no setor nuclear latino-americano e o protocolo adicional

A abertura à multipolaridade e a colaboração nuclear entre Argentina e Brasil são complementares e decisivas para neutralizar vetos e marcos regulatórios

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Quando a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) abriu o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) para assinatura em 1968, Argentina e Brasil se abstiveram de assiná-lo. Ambos os países o consideraram discriminatório. Embora o TNP encoraje a inspeção e o controle dos países em desenvolvimento com planos nucleares incipientes, não faz exigências aos países com arsenais nucleares em expansão. Desde então, a noção de não-proliferação tem sido a semente de uma concepção normativa e de práxis diplomáticas destinada a proteger a liderança comercial e a supremacia militar do clube das indústrias nucleares das economias centrais.

Apesar de se considerarem concorrentes rivais, Argentina e Brasil interpretaram que as restrições e obstáculos ao acesso e desenvolvimento da tecnologia nuclear, justificados por uma aplicação arbitrária da noção de não proliferação, tornavam imperativo iniciar um processo de cooperação bilateral. Enquanto se avançava nessa direção, como veremos a seguir, no contexto da radicalização das políticas neoliberais na região, pressões persistentes levaram os governos de Carlos Menem, em 1995, e o governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1998, a aderir ao TNP.

Assim, intensificou-se a lógica estrutural de entravar os planos nucleares dos países em desenvolvimento. A AIEA aprovou em 1997 o chamado Protocolo Adicional (PA) ao TNP, que prevê medidas de inspeção e controle muito mais invasivas. A narrativa que justificou o PA toma como desculpa a detecção dos programas nucleares secretos do Iraque e da Coreia do Norte, países que aderiram a amplas salvaguardas da AIEA. Essas transgressões foram capitalizadas pelas potências nucleares, que promoveram um sistema de salvaguardas mais exigente na AIEA. Em outras palavras, dois casos são postulados para justificar suspeita e escrutínio mais rigoroso em todo o mundo em desenvolvimento, independentemente do contexto ou das trajetórias específicas de países e regiões.

O PA, diz-se, pretende contabilizar e controlar os materiais nucleares dos países aderentes para evitar desvios furtivos que possam ser utilizados na construção de armas nucleares, bem como verificar a inexistência de materiais ou instalações nucleares clandestinas e/ou atividades não declaradas. O PA autoriza a AIEA a aplicar as chamadas “salvaguardas reforçadas”, que permitem a inspeção de qualquer instalação sem aviso prévio, mesmo instalações não diretamente ligadas à área nuclear.

Três anos depois, 128 países dos 188 membros do TNP assinaram o PA e 95 o ratificaram. No entanto, é preciso esclarecer que, diferentemente da Argentina e do Brasil, que até o momento não aderiram, para muitos países não há custo de adesão, pois não buscam desenvolver indústrias nucleares com níveis crescentes de autonomia e capacidade exportadora. Além do status assimétrico que reproduz a lógica do TNP, o PA criaria ônus financeiros adicionais com efeitos de sobrecarga no desenvolvimento das capacidades comerciais.

Desta forma, a saga do TNP se repete em um “estágio superior”. Embora formalmente o PA suponha adesão voluntária, na verdade ele volta a funcionar como instrumento de pressão sobre a Argentina e o Brasil. Digamos de passagem que essa dinâmica estimula lobistas de todas as espécies, com consequências políticas nefastas que se acentuam no contexto atual de tensões crescentes entre EUA e China.

Os mantras promovidos por lobistas que recomendam a assinatura da PA são variações da mesma banalidade tautológica: a não assinatura da PA coloca Brasil e Argentina no clube dos países suspeitos. Suspeitos de quê? De querer construir bombas atômicas? Para que? Esses argumentos ignoram – ou fingem ignorar – um dos marcos mais fascinantes da colaboração nuclear global: a criação, em 1991, da Agência Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), uma inovação institucional bilateral que antecedeu a PA que se concretizou após um complexo processo de negociações de mais de duas décadas.

Mas o que a ABACC tem a ver com o Protocolo Adicional? Vamos contextualizar esta questão.

A propósito do instrumento para a colaboração nuclear bilateral, após a cúpula de Foz de Iguaçu, em 30 de novembro de 1985, entre os presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney, onde foi assinada a “Declaração Conjunta sobre Política Nuclear”, o prestigioso anuário SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute) interpretou mal esse passo inédito contra todas as evidências. Sobre a Argentina, afirmou que “sua política de adquirir elementos para um programa de armas nucleares não deu frutos: não melhorou a segurança do Estado, sua reputação internacional, a coesão da nação ou as condições materiais do povo”. Além disso, acrescentou, “os alvos precisos de possíveis armas nucleares argentinas sempre foram obscuros”.

Em outras palavras, a Argentina estaria desenvolvendo um programa de armas nucleares sem objetivos específicos. Falso de toda falsidade. Depois de afirmar a mesma coisa sobre “os grandiosos e totalmente injustificáveis projetos de energia nuclear” no Brasil, concluiu: “De qualquer forma, Argentina e Brasil enfrentam atualmente dificuldades econômicas que os obrigam a descartar programas de armas nucleares” (SIPRI, 1986: 477 ).

Essas ações de descrédito não são espontâneas. Elas estão sempre coordenadas, e em sucessão. Como exemplo, em 1987, Cynthia Watson, especialista em proliferação nuclear na região, referindo-se à Argentina e ao Brasil, afirmou: “Mas, a luz no fim do túnel para os preocupados com a disseminação de armas nucleares e a indústria é que a crise econômica enfrentada por esses estados provavelmente proibirá qualquer expansão nuclear grandiosa nos próximos anos” (Watson, 1987: 209).

Em outras palavras, assim como para o SIPRI, para Watson “a crise econômica” em ambos os países era uma fonte de esperança de não ampliação de novos concorrente para os países exportadores de tecnologia nuclear, que ademais, desenvolvem arsenais nucleares de eficiência destrutiva crescente. O SIPRI nunca recuou de tal absurdo. Não é uma exceção. Poderíamos multiplicar esses exemplos de construção de supostas intenções ocultas coordenadas por ações diplomáticas, imprensa e organizações que se agregam com os rituais da academia.

Para neutralizar essa lógica inquisitorial, os dois países conseguiram plantar a semente institucional de um paradigma regulatório alternativo ao proposto pela AIEA, a PA e suas iniciativas, baseadas na construção seletiva de suspeitas sobre países em desenvolvimento com programas nucleares que buscam  níveis crescentes de autonomia.

Como ponto de chegada de uma árdua trajetória de mais de duas décadas, em 1991, Argentina e Brasil criaram a ABACC e assinaram em dezembro do mesmo ano o Acordo Quadripartite para a Aplicação de Salvaguardas entre Argentina, Brasil, ABACC e AIEA. O paradigma proposto por este novo regime baseia-se na construção de confiança entre os países vizinhos por meio da inspeção mútua e da presença ativa da AIEA.

Embora formalmente a ABACC, como instituição bilateral de caráter técnico, tenha sido criada com função específica voltada para a gestão de um Sistema Comum de Contabilidade e Controle (de materiais nucleares), sua criação facilitou a cooperação entre Argentina e Brasil nos usos pacíficos da energia nuclear e, como corolário, teve o efeito político de desconstruir a rivalidade histórica fomentada de fora.

Alguns intelectuais avaliaram e anteciparam essa necessidade. Em 1977, o tecnólogo argentino Jorge Sabato citou o cientista político brasileiro Helio Jaguaribe: “A chave para a independência da América Latina é o entendimento argentino-brasileiro […] E a chave para o entendimento argentino-brasileiro é a cooperação nuclear” ( Sabato, 1977: 13, 17).

ABACC e o Protocolo Adicional

Em telegrama enviado a Washington em 11/05/2009 (revelado pelo WikiLeaks), o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Clifford Sobel, revela a intenção de manipular e enfraquecer as relações bilaterais:

“A Argentina aceitou a visão de que, porque tanto o Brasil quanto a Argentina concluíram seu Acordo Quadripartite com a AIEA em 1997 sob a égide da Agência Argentina-Brasileira de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) de 1991, a Argentina não pode aceitar um Protocolo Adicional sem que o Brasil também o faça. Se pudesse ser encontrada uma maneira de a Argentina assinar um Protocolo Adicional sem que o Brasil tivesse que fazê-lo, isso colocaria uma enorme pressão sobre o Brasil para fazer o mesmo”.

Em resposta a esse tipo de manobra, em abril de 2010, o ministro da Defesa do governo Luiz Inácio Lula da Silva, Nelson Jobim, convocado pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, afirmou que “o Brasil decidiu aprovar o TNP e manter o TNP, mas não cederá ao protocolo adicional, por ser invasivo de nossa soberania” (Audiência Pública 0298/10, 07/04/2010). Um mês depois, ao ser questionado em entrevista, o chanceler brasileiro Celso Amorim sobre a possibilidade de a Argentina “deixar o Brasil em paz”, visto que setores do Itamaraty seriam favoráveis à AP, ele afirmou:

“Os acordos nucleares com a Argentina, dos quais a ABACC é fundamental, são um pilar da nossa associação estratégica. Os dois países têm que caminhar juntos, e isso é percebido pelos dois lados. Não vejo risco de adesão unilateral” (citado em: Folha de S. Paulo, 03/05/2010).

Dias depois, o especialista argentino em relações internacionais Juan G. Tokatlian afirmou em um jornal local que a ABACC é suficiente para garantir a não proliferação, sendo necessário reforçá-la com novos compromissos bilaterais. E depois de explicar que a Argentina deveria deixar explícita sua intenção de não assinar o PA, acrescentou:

“Enquanto isso não acontecer, os Estados Unidos continuarão pressionando a Argentina para criar uma fissura entre Buenos Aires e Brasília. Não muito tempo atrás, na Conferência de Segurança Nuclear convocada por Barack Obama, a Argentina esteve perto de aceitar o protocolo de forma unilateral. Isso teria sido um erro estratégico monumental” (Tokatlian, 2010).

Dois marcos relacionados ao status da ABACC ocorreram em 2011. Com 20 anos de experiência, a ABACC passa a participar como observadora das reuniões do Conselho de Governadores da AIEA. Além disso, após cinco anos de negociações no âmbito do Grupo de Fornecedores Nucleares (NSG, pelas siglas em inglês) – formado pelos 46 países exportadores de tecnologia nuclear – aceita-se que a ABACC apresenta garantias suficientes para ser considerada em patamar semelhante ao PA (Jonas e outros, 2012).

Por fim, a Estratégia de Defesa Nacional de 2012 afirma que o Brasil “não aderirá a novos compromissos até que os Estados com armas nucleares façam progressos significativos no cumprimento de suas obrigações de desarmamento nos termos do Artigo VI do TNP” (citado em: Oliveira do Nascimento Plum e Rollemberg de Resende, 2016 : 587).

Nesse contexto, entre 2014 e 2016, a Argentina foi escolhida para presidir as atividades do NSG, liderado pelo então embaixador da Argentina na Áustria e representante permanente junto à AIEA, Rafael Grossi, atual Diretor Geral da AIEA.

Novamente, o especialista argentino Juan G. Tokatlian, em 2016, explicou ao jornal La Nación, que mais de 140 países assinaram protocolos, “entre eles os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, que, com variações em relação ao modelo-padrão, eles propõem um esquema não intrusivo para a inspeção de seus arsenais nucleares, que ainda estão intactos”. Ele argumentou que o modelo convencional de AP “não é superior em suas demandas ao Acordo Quadripartite”. Por isso, diante de argumentos hipotéticos que especulam que a assinatura da AP garante o apoio de Washington ou que “haveria mais negócios no campo nuclear”, conclui que “o oportunismo na política externa foi e é desastroso porque gera um benefício simbólico a curto prazo e alto custo a longo prazo. E acrescenta que “seria inédito o desmantelamento de um mecanismo que é único no mundo e que se tem revelado muito eficaz”.

A política externa de alinhamento incondicional do governo Macri – que em 2016 iniciou mais um ciclo de desindustrialização, financeirização, endividamento e fuga para frente – tentou levar a Argentina a assinar o PA enquanto deixava a ABACC morrer de fome e insignificância. A gradualidade da manobra foi obstada pela derrota nas eleições de 2019.

“Quintal dos EUA” versus janela de oportunidade.

No atual contexto de reação exacerbada à emergência da China na disputa hegemônica, os Estados Unidos vetam – com palavras e ações humilhantes – o acesso da Argentina à compra de uma usina nuclear de uma empresa chinesa (ver Béliz, el radiactivo; El lobby estadounidense…).

O governo argentino parece estar aceitando secretamente o veto, com o efeito de evaporar a política nuclear e desmantelar o setor. Esse sinal de fraqueza sugere a iminente intensificação da pressão para que a Argentina assine unilateralmente o PA como penhor final de subordinação. Aparentemente, por nada. Esse passo seria letal para o fortalecimento e desenvolvimento da ABACC.

No entanto, na “Ata da reunião do Comitê Permanente Argentino-Brasileiro de Política Nuclear (CPPN)”, realizada no Palácio San Martín, em 26/07/2022, pode-se ler que o argentino (2022-2023) e a brasileira (2923-2024) do NSG permitirá “avançar em ações conjuntas de conscientização e divulgação entre os demais Governos Participantes do NSG sobre a ABACC como um mecanismo inovador, único e eficiente em termos de salvaguardas, que oferece garantias comparáveis aos do Modelo de Protocolo Adicional aos acordos de salvaguardas”.

E também se lê:

“Ambas as delegações concordaram com a necessidade de divulgar a experiência da ABACC como uma experiência altamente bem-sucedida em termos de salvaguardas, especialmente à luz da crescente pressão sobre o Modelo de Protocolo Adicional para a próxima Conferência de Revisão.”

Em um cenário global onde a transição energética se apresenta como a bala de prata disponível para promover o “rejuvenescimento” de um capitalismo anêmico, os evidentes limites das energias renováveis intermitentes volta-se o olhar para a energia nuclear, revalorizada como uma energia de base robusta, segura e economicamente viável.

No cerne da luta pelo desenvolvimento, invisibilizar a centralidade do fator tecnológico faz parte da geopolítica do “quintal”. A abertura à multipolaridade e a colaboração nuclear entre Argentina e Brasil aparecem como iniciativas complementares e decisivas para neutralizar a imposição de vetos e marcos regulatórios que dificultam essa janela de oportunidade para ambos os países.

Referencias

Jonas, D., Carlson, J. y Goorevich, R. 2012. “The NSG Decision on Sensitive Nuclear Transfers: ABACC and the Additional Protocol”, Arms Control Today, t. 42, n. 9. Oliveira do Nascimento Plum, M. y Rollemberg de Resende, C. 2016. “The ABACC experience: continuity and credibility in the nuclear programs of Brazil and Argentina”, The Nonproliferation Review, v. 23, n. 5-6.

SIPRI. 1986. World Armaments and Disarmament. SIPRI Yearbook. Oxford: OUP.

Sabato, J. 1977. “El plan nuclear brasileño y la bomba atómica”, Criterio, n. 1765.

Tokatlian, J. G. 2010. “Política nuclear, al lado de Brasil”, Clarín, 19/5.

Watson, C. 1987. “Will Civilians Control the Nuclear Tiger in Argentina?”. En: Worsley, P. y Buenor Hadjor, K. (eds.), On the Brink. Nuclear Proliferation and the Third World. London: Third World Communications. 

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