Observatório da Economia Contemporânea

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Os riscos do ajuste fiscal temporão

O principal deles é realizar a consolidação fiscal de curto prazo num momento de reversão cíclica, como o atual. A história brasileira recente está repleta de exemplos negativos a esse respeito

O novo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Foto: Evaristo Sá/AFP
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O Ministério da Fazenda anunciou, no dia 12, as Medidas de Recuperação Fiscal, na contramão do que havia sido aprovado na PEC da Transição. Ou seja, esta última, acrescida de outras despesas menores, legou ao Orçamento de 2023 um déficit primário estimado em R$ 231,5 bilhões ou 2,16% do PIB. No entanto, as medidas propostas pelo Ministério da Fazenda, embaladas pela lógica do equilíbrio fiscal pretendem reverter integralmente essa meta de déficit, indicando um ajuste da ordem de 2,26% do PIB, almejando, ao final de 2023, um superávit primário de 0,10% do PIB. 

Certamente, há dúvidas sobre a factibilidade da integralidade das medidas, mas a direção é inequívoca. É uma restrição fiscal significativa que só tem paralelo, com os anos de 1998/1999, na gestão Pedro Malan, e segundo mandato de FHC, onde sob a supervisão do FMI se observou uma variação do superávit primário 3 pontos percentuais do PIB em um ano. A proposta atual tem algumas peculiaridades, como o fato de que não procura ampliar o superávit, mas zerar o déficit e outras semelhanças com o programa de 1998/99, como por exemplo, o privilégio ao aumento da carga tributária, ou recomposição de receitas, vis a vis o corte de despesas e deve ser julgada também nessa dimensão. A ótica que anima este texto é avaliá-la da perspectiva macro, ou seja, analisar em que medida a função anticíclica da política fiscal ou o seu papel na estabilização do ciclo será cumprida.

Já foi referido o contexto econômico no qual o ajuste vigorará: a desaceleração da economia doméstica e a provável recessão internacional, esta última, reforçando a primeira. Em princípio, como veremos a seguir, o ajuste proposto, pela sua magnitude, é contracionista vis a vis o Orçamento de 2023 aprovado pelo Congresso, e deverá jogar água no moinho da desaceleração doméstica. Mas, aqui cabe considerar que, comparando 2022 com 2023, o impacto contracionista será mitigado – para além dos aspectos quantitativos – pela modificação ocorrida no perfil de gastos promovido pela PEC da Transição e pelas novas medidas de ajuste. Grosso modo, a PEC ampliou os gastos de alto poder multiplicador – sociais e de investimento – em cerca de 2% do PIB. As medidas atuais procuram retirar esse poder de compra adicional por meio de ampliação de receitas e algumas despesas, com multiplicador menor. O efeito é similar àquele descrito no teorema do multiplicador do orçamento equilibrado.

Como veremos a seguir, essas peculiaridades mitigam, mas não eliminam o impacto contracionista das medidas, comparativamente ao Orçamento aprovado. Desde logo, porque implicam na redução de despesas da ordem de 0,5% do PIB, com o decorrente impacto multiplicador negativo. O aumento de receitas divide-se em duas partes: aquelas relativas aos ganhos permanentes e, portanto, à reonerações, lato senso, do setor privado, que corresponde a 1,14% do PIB e, os ganhos extraordinários relativos à pagamento de dívidas tributárias, correspondendo a 0,65% do PIB.

A primeira parte, implica extração de renda corrente do setor privado e certamente, diminuirá seu patamar de gasto. E essa redução não será compensada pelo aumento do gasto público pois seu destino é a redução do déficit. No caso do pagamento de dívidas tributárias, o efeito é semelhante, mas menos intenso pois depende da origem dos recursos utilizados para pagá-las: patrimonial ou corrente. Disso tudo decorre uma conclusão inescapável: com intensidade variável por sua natureza e factibilidade, as medidas terão um efeito líquido contracionista – vis a vis o Orçamento aprovado – sobre a demanda agregada e o crescimento da economia.

É difícil de entender, no âmbito de um governo progressista, a opção do Ministério da Fazenda em insistir num ajuste de curto prazo de eliminação ou redução substancial do déficit primário

Isto posto, cabe perguntar qual a racionalidade desse conjunto de medidas, no contexto econômico atual? Presume-se que subjacente às medidas de eliminação do déficit público, haja um incentivo à expansão do gasto privado. Ou seja, admite-se que por várias razões, mas que têm como substrato a sustentabilidade da dívida pública, a melhora da sua trajetória reestabeleça a confiança e implique na recuperação dos vários tipos de gastos privados, ampliando o crescimento. 

O raciocínio padrão da ortodoxia estabelece uma relação unívoca entre redução do déficit, ou aumento do superávit, e melhora da trajetória da dívida, mas a proposição está sujeita a controvérsias. A rigor, a trajetória da dívida depende do saldo primário, da taxa de juros que incide sobre o estoque de dívida e do crescimento do PIB, excetuando variações patrimoniais. Logo, o que está suposto no raciocínio ortodoxo é que a redução do déficit, não só elimine o acréscimo correspondente à nova dívida a ser financiada – o que é verdadeiro – mas, também, que reduza as taxas de juros que incidem sobre o seu refinanciamento e, ademais, seja benéfica à trajetória do PIB. Ou, que uma combinação virtuosa entre as três variáveis ocorra.

Contudo, essa é uma hipótese possível, mas não necessariamente verificável. A melhor combinação de variáveis – saldo primário, taxas de juros e crescimento do PIB – depende, sobretudo, da conjuntura e não é uma escolha abstrata, mas de política econômica e dos seus limites.

Uma melhora na trajetória da dívida pública com a redução da relação dívida/PIB pode produzir, ou não, uma redução das taxas longas de juros dos títulos dessa dívida. Isto dependerá da fase do ciclo de liquidez global e da postura da política monetária dos países centrais em particular dos EUA.

Em momentos de política restritiva, como o atual, com aumento do espectro de taxas de juros, as variações daquelas mais relevantes, as do EUA, comandam o movimento das demais taxas soberanas, ou seja, dos riscos-país, particularmente de países periféricos. A evolução do risco soberano dos títulos das dívidas públicas está prioritariamente determinada pela “fuga para a qualidade”. Em resumo, o risco país associado à trajetória da dívida pública é relevante, mas subordinado aos movimentos mais poderosos do ciclo de liquidez global, sobretudo nas fases restritivas da política monetária. 

Por sua vez, as relações entre saldo primário e trajetória do PIB também são complexas e mediadas pelo ciclo econômico. Em momentos de desaceleração a contração fiscal a acentua e pode levar à recessão, como se observou por exemplo, nas políticas de austeridade na crise do Euro, ou em vários momentos da nossa economia, como será assinalado adiante. 

No Brasil, o contexto pós-pandemia, na qual se realizou uma política anticíclica de grande envergadura, é de melhora dos indicadores fiscais, em desacordo com a grande maioria das economias do mundo e a despeito do fisiologismo do governo Bolsonaro. Assim, em 2021 e 2022 o governo central produziu uma significativa contração fiscal, saindo de um déficit primário de 8% do PIB em 2020 para superávits de 0,7% e 1,1% do PIB em 2021 e 2022, respectivamente.

O mercado e a ortodoxia relativizam esse resultado atribuindo-o em grande parte ao crescimento excepcional das receitas, associado ao ciclo favorável de preços das commodities. Isto é parcialmente verdadeiro, pois a atividade extrativa mineral tem perfil cíclico mais acentuado, mas a proposição exclui o fator principal: para além de receitas de atividades específicas a arrecadação beneficiou-se do crescimento da economia, bem acima da média, nos dois anos em questão, 5% em 2021 e 3% em 2022. Ademais, houve também ajustes nas despesas por conta da redução proporcional dos gastos da Previdência e assistência social e congelamento dos salários do funcionalismo. O fato é que as despesas primárias como proporção do PIB situaram-se respectivamente em 18,1% e 18,4% nos anos em questão – já incluídas todas as PEC do fura teto – valor substancialmente menor do que o padrão pré-Bolsonaro, em torno de 20% do PIB.

O mantra do mercado, do Banco Central e da ortodoxia, com os “riscos fiscais” vai além dos aspectos correntes e engloba a trajetória da dívida. Pouco importa para esses atores o fato de que apesar da pandemia, da magnitude da ação anticíclica e do fisiologismo do último biênio do governo Bolsonaro, que a dívida, nos conceitos bruto e líquido, esteja no mesmo patamar de 2019.

Atribui-se esse desempenho, genericamente à inflação, o que é uma meia verdade. De fato, o deflator implícito que indexa o PIB, denominador da relação dívida/PIB, andou mais rápido do que o IPCA que corrige o numerador. Mas, o que não é tomado em conta nessa análise é que a carga de juros, e os juros reais, tiveram papel dominante no aumento da dívida por conta da taxa básica de juros praticada pelo Banco Central e a sua transmissão para os juros longos. Como consequência, a taxa de juros média incidente sobre a dívida pública – calculada para 12 meses- passou de 4,5% em janeiro de 2021, para 12% em outubro de 2022, quase triplicando. Por sua vez a carga de juros passou de 4% pra 6% do PIB, no mesmo período. 

Assim, o ajuste de curto prazo foi substantivo e onde, de fato, subsistem razões para incerteza é no arcabouço fiscal vigente. Estrutura tributária disfuncional e regras fiscais inconsistentes e repetidamente desrespeitadas caracterizam hoje o regime fiscal brasileiro, criando desconfianças sobre a trajetória de longo prazo de duas variáveis críticas: a carga tributária e a dívida pública. Para o setor privado e o mercado financeiro, esses são aspecto cruciais, pois dizem respeito à sua renda e riqueza. Dessa perspectiva, a reformulação do arcabouço fiscal, incluindo a reforma tributária e um nova âncora são de fato essenciais para criar um ambiente de confiança. Todavia, essas são definições para endereçar o médio e longo prazos e, portanto, a dimensão estrutural não devendo ser confundidas com ajustes de curto prazo, no saldo primário, que tem dimensão cíclica e conjuntural.

Há vários riscos em superpor as duas dimensões, o principal deles é realizar a consolidação fiscal de curto prazo num momento de reversão cíclica, como o atual. A história brasileira recente está repleta de exemplos negativos a esse respeito.

A começar pelo ajuste do biênio 1998/99 que contribuiu de maneira importante para o mau desempenho da economia no segundo mandato FHC. Ou, o do primeiro ano do governo Dilma, no qual um aumento do superávit primário produziu uma redução pela metade da taxa de crescimento, de 4 para 2% a, a. Ou ainda, do malfadado ajuste de 2015 e 2016, que conduziu a uma contração de tal intensidade no PIB – 3,5 e 3,3% respectivamente – produzindo um resultado contrário do pretendido, ou seja um aumento do déficit primário. Esses períodos têm em comum uma desaceleração da economia doméstica, combinados com conjunturas internacionais mais ou menos difíceis, muito semelhantes ao quadro atual.

É difícil de entender, no âmbito de um governo progressista, a opção do Ministério da Fazenda em insistir num ajuste de curto prazo de eliminação ou redução substancial do déficit primário, com o risco de transformar uma desaceleração, com uma previsão de crescimento muito baixo, em torno de 1%, em uma estagnação ou mesmo, numa recessão.

A criação de um clima de confiança e previsibilidade poderia privilegiar o avanço mais rápido no novo arcabouço fiscal, deixando de lado o ajuste de curto prazo. Isto porque este último já foi precificado pelo mercado e, cada vez que se mexe no assunto ele é reavaliado, para cima. Isto sem contar que também foi precificado por grupos políticos no Congresso que cobraram pela PEC da Transição, as presidências das duas casas, várias comissões parlamentares relevantes e alguns ministérios. 

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