Observatório da Economia Contemporânea

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Estado, Transição Sustentável e Estratégia de Desenvolvimento Democrático

O imperativo é claro: equilibrar crescimento, justiça social e sustentabilidade. E a janela de oportunidade, embora ainda aberta, está se fechando rapidamente

Estufas construídas com painéis solares na vila de Yang Fang, no condado de Anlong, província de Guizhou, China, em 10 de junho de 2017. Foto: STR/AFP/Getty Images
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No atual Antropoceno[1], período geológico marcado pela influência dominante das atividades humanas no sistema terrestre, a crise climática emerge como uma manifestação alarmante das interações entre seres humanos e o ambiente. Originária de um modo de produção marcado por práticas industriais e agrícolas insustentáveis, as alterações climáticas delineiam-se como a maior ameaça à integridade socioecológica global. Manifestações concretas deste fenômeno, como a elevação do nível do mar, eventos climáticos extremos e cada vez mais intensos, e a consequente perda de biodiversidade, tornam-se recorrentes. Paralelamente, agravam-se as disparidades socioeconômicas, e as populações mais vulneráveis, que detêm uma contribuição marginal às emissões de gases de efeito estufa (GEE), enfrentam os impactos mais severos. Os países do Sul Global, dotados de capacidades limitadas para adaptação e mitigação, são desproporcionalmente desafiados por esta crise, intensificando os obstáculos econômicos, sociais e de saúde pré-existentes nesses territórios.

Diante deste cenário, torna-se imperativo reconhecer que a perpetuação do atual modo de produção e o estilo de vida associado a ele é insustentável. Assim, é imperativo reestruturar profundamente as práticas econômicas e sociais. O papel do Estado, neste contexto, deve ser reimaginado, transformando-se de apoio à reprodução do neoliberalismo em um catalisador de mudanças sustentáveis e equitativas, que promova um equilíbrio entre diversificação produtiva, redução das desigualdades sociais e econômicas, e preservação do meio ambiente. Esta transição exige uma visão renovada de governança e planejamento, na qual a sustentabilidade e a justiça se interliguem em todas as esferas de atuação estatal.

O desenvolvimento econômico sustentável surge como uma resposta integrada a esses desafios intrincados. A Estratégia de Desenvolvimento Democrático refere-se a uma abordagem integrada para o desenvolvimento sustentável que enfatiza a necessidade de alinhar políticas macroeconômicas e sociais para garantir a proteção dos mais vulneráveis e melhorar o bem-estar social. Esta estratégia propõe que políticas sociais democráticas devem ser universais, priorizando a provisão de bens públicos e o bem-estar social, ao invés de limitar-se a pequenas ações, com ambição limitada, e políticas sociais condicionais. O objetivo é direcionar recursos de forma eficaz, garantindo que todos tenham acesso a serviços essenciais, enquanto se assegura que os grupos prioritários recebam os benefícios potenciais de cada projeto ou iniciativa. A Estratégia de Desenvolvimento Democrático não apenas reconhece o imperativo de abordar o crescimento econômico de uma perspectiva holística, mas também coloca a sustentabilidade ambiental no cerne do processo de reprodução econômica.

Para combater eficazmente a crise climática, não basta reduzir emissões de GEE. É essencial reestruturar a economia mundial para que ela se torne tanto equitativa quanto sustentável. Neste contexto, políticas que priorizam a provisão de bens públicos – como educação, saúde, habitação, transporte e saneamento – ganham primazia. A ideia não é apenas melhorar o padrão de vida, mas fazê-lo de uma forma que esteja em harmonia com a Terra e seus recursos finitos.

Para entender a pertinência da Estratégia de Desenvolvimento Democrático, é essencial reconhecer a complexidade e a interligação dos desafios que enfrentamos. A desigualdade econômica, mais do que apenas uma discrepância nos rendimentos, reflete-se em disparidades na qualidade de vida, acesso à educação, saúde, oportunidades e expectativa de vida. Paralelamente, a degradação ambiental e a mudança climática ameaçam exacerbar essas desigualdades, com os mais vulneráveis potencialmente sofrendo as consequências mais diretas e severas.

A Estratégia de Desenvolvimento Democrático, ao refletir uma abordagem totalizante, procura integrar políticas macroeconômicas e sociais, reconhecendo que soluções fragmentadas não podem endereçar problemas tão intrinsecamente ligados. Em vez de adotar políticas assistencialistas, é fundamental garantir o acesso universal a bens e serviços públicos essenciais. Políticas que priorizem educação, saúde, habitação, água e saneamento, entre outras, têm o potencial não só de elevar os padrões de vida, mas de fazer isso de forma equitativa e sustentável.

O financiamento de políticas voltadas para uma transição verde e sustentável, ancorada nos princípios de justiça socioeconômica, é uma matéria intrincada e multidimensional. Em diversas nações, já existem infraestruturas administrativas que podem ser aproveitadas, ou, alternativamente, novas estruturas podem ser erigidas a baixo custo, com investimentos direcionados. A execução de uma Estratégia de Desenvolvimento Democrático  exige significativa mobilização de capital. O Estado, como ator central, possui um papel preponderante em canalizar recursos para esta empreitada, seja por meio de uma tributação progressiva, emitindo títulos verdes, ou fomentando iniciativas alinhadas a objetivos sustentáveis. Além disso, empréstimos tanto internos quanto externos, somados a impostos globais sobre emissões e transações financeiras, configuram-se como instrumentos valiosos nesse cenário. Taxações específicas sobre bens de luxo com alta pegada de carbono e transações financeiras internacionais não só têm o potencial de ampliar a receita disponível, como também oferecem uma oportunidade de recalibrar e adaptar o sistema financeiro, tornando-o mais resiliente e alinhado às urgências ambientais contemporâneas.

A Estratégia de Desenvolvimento Democrático exige a forja de uma nova convenção para o desenvolvimento sustentável, um paradigma que reconhece o imperativo de reestruturar tanto a economia quanto a sociedade. Uma convenção, em sua essência, é uma crença compartilhada, um consenso que permeia e orienta ações coletivas. Nesta reconceptualização, torna-se crucial promover o entendimento de que o papel do Estado transcende o mero papel de regulador ou facilitador; ele deve ser o catalisador da transição verde sustentável. Isto implica que todos os instrumentos à disposição do Estado, desde as políticas fiscais até as estratégias monetárias e financeiras, devem ser alinhados e reorientados com esse propósito em vista. Portanto, não apenas as políticas públicas diretas, mas também as nuances da política monetária, fiscal e de gestão econômica devem ser harmonizadas para assegurar que a transição verde sustentável não seja apenas um objetivo, mas a pedra angular sobre a qual a Estratégia de Desenvolvimento Democrático  se assenta.

A Estratégia de Desenvolvimento Democrático também reconhece a importância da diversificação. Diversificar economias, especialmente aquelas que dependem fortemente de um único recurso natural ou setor econômico, é crucial para sua resiliência e adaptabilidade. E aqui, a transição para economias sustentáveis desempenha um papel essencial. Investimentos em tecnologias sustentáveis, energia renovável e práticas agrícolas de baixa emissão de GEE não são apenas eticamente corretos, mas econômica e estrategicamente sensatos.

Ao refletirmos sobre as últimas décadas, fica evidente que o modelo neoliberal financeirizado, ao priorizar o mercado e minimizar a intervenção estatal, tem limites estreitos e graves falhas. A primazia do lucro, muitas vezes à custa do meio ambiente e da justiça social, resultou em vulnerabilidades crescentes. Aqueles na base da pirâmide socioeconômica, bem como países menos diversificados e estruturalmente dependentes, estão particularmente em risco.

O futuro, no entanto, não precisa ser uma mera extensão do passado. A implementação da Estratégia de Desenvolvimento Democrático, embora desafiadora, é possível. Mas é essencial que ocorra uma transformação política concomitante. Instituições representativas robustas são essenciais, assim como é a mobilização dos menos privilegiados para contrapor a influência das elites tradicionais.

Finalmente, é imperativo agir. A transição do neoliberalismo financeirizado para a Estratégia de Desenvolvimento Democrático é uma tarefa urgente, absolutamente necessária. As escolhas de hoje definirão o mundo em que as futuras gerações viverão. O imperativo é claro: equilibrar crescimento, justiça social e sustentabilidade. E a janela de oportunidade, embora ainda aberta, está se fechando rapidamente. A hora de agir é agora.

[1] Antropoceno é um termo proposto para caracterizar a época geológica atual, na qual a influência humana sobre o planeta tornou-se tão predominante que provocou alterações significativas e duradouras em diversos sistemas terrestres. Esse termo deriva do grego “anthropos”, que significa “humano”, e “kainos”, que significa “novo”. As atividades humanas, especialmente desde a Revolução Industrial, causaram impactos ambientais profundos, como o aumento das emissões de GEE, desmatamento em larga escala, perda de biodiversidade, contaminação de sistemas aquáticos e terrestres, e a criação de novos materiais, como plásticos, que têm uma longa persistência no ambiente.

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