Observatório da Economia Contemporânea

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Crises climáticas em uma ordem neoliberal

Existe uma contradição irresolúvel entre a busca incessante de lucros individuais sob o capitalismo financeirizado neoliberal e as consequências sociais das atividades que geram esses lucros

Fonte: Vinícius Mendonça/Ibama via Fotos Públicas
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O maior desafio que a humanidade enfrentará neste século é sem dúvida a crise climática. O desastre é quase inevitável. As emissões antropogênicas de gases de efeito estufa (GGE) já aumentaram a temperatura global em pelo menos 1ºC desde a revolução industrial, e as tendências atuais sugerem que poderiam subir – num caso extremo – até 6ºC até 2100. Nos anos vindouros, o mundo se defrontará com uma sucessão de calamidades ambientais cada vez mais intensas e frequentes, e que já têm se feito presentes: incêndios florestais, furacões, calor abrasador, aumento incremental do nível do mar, e assim por diante. As péssimas notícias não param por aí – o espaço temporal de ação para reduzir as emissões de GEE e limitar o aquecimento global a 1,5°C, ou mesmo 2°C, até o final do século, conforme foi estabelecido pelo Acordo de Paris, está se fechando. 

Minimizar os efeitos da crise climática requer alterações drásticas e imediatas nos padrões de produção e consumo. Essas mudanças envolvem investimentos de longo prazo em novos setores produtivos, inovações e transformações políticas e econômicas. Centenas de bilhões de dólares terão que ser alocados para desenvolver novas tecnologias em energia limpa, maior eficiência no transporte, agricultura sustentável, e transformações verdes na produção, consumo e reprodução social. Em particular, a transição verde sustentável precisa de uma ruptura tecnológica para atender à demanda de energia do planeta. A transição requer, portanto, um esforço coletivo que tenha como objetivo central a missão de transformar uma sociedade altamente poluente e destrutiva do meio-ambiente em uma sociedade sustentável em termos ambientais, num curtíssimo espaço de tempo. 

Os desafios são enormes e a coordenação dessa transformação demanda uma ação do Estado que não condiz com o atual sistema de acumulação neoliberal financeirizado – as exigências impostas são incompatíveis com a inclinação neoliberal rumo à coordenação econômica através de mecanismos ditos “de mercado” – o que, na prática, implica a supremacia das instituições financeiras acima da coordenação centralizada pelo Estado.

Os atuais desafios ambientais estão intimamente relacionados a cinco fontes de estresse na economia global: 

Primeiro, e como pano de fundo, existe uma contradição irresolúvel entre a busca incessante de lucros individuais sob o capitalismo financeirizado neoliberal, por meio da extração, produção, troca, especulação e pilhagem, e as consequências sociais das atividades que geram esses lucros. Isto não é simplesmente uma questão “técnica” de capacidade de absorção ou de orçamentos de carbono. O problema subjacente é que a manutenção do “Business as usual” requer recursos naturais que excedem a capacidade de regeneração do planeta. 

Em segundo lugar, há uma disjunção entre a consciência de longo prazo dos limites ambientais a esse modelo de crescimento e a evidente incapacidade dos governos e organizações intergovernamentais de fazer muito para enfrentar a mudança climática. Mais de um quarto de século desde que a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) entrou em vigor, pouco se tentou e menos ainda se conseguiu. As emissões de alguns países desenvolvidos diminuíram nos últimos anos, mas estes resultados, especialmente nos EUA e no Reino Unido, se devem principalmente à desindustrialização e à transferência de sua produção industrial (e emissões) para o Sul Global. Seria enganoso para os países desenvolvidos reivindicar créditos por estas reduções de GGE porque são, por definição, transferências que não refletem melhorias nas tecnologias, não desafiam os padrões de vida atuais e não fazem nada para enfrentar o desastre climático. 

Terceiro, a contradição entre as emissões acumuladas pelos principais países desenvolvidos, com base nas quais eles cresceram no passado, e o rápido aumento das emissões nos países subdesenvolvidos. Os países subdesenvolvidos reivindicam hoje o direito ao desenvolvimento, com as tecnologias existentes, e argumentam que o restante do orçamento de carbono deve ser disponibilizado principalmente para eles, já que existe uma forte relação entre o crescimento das emissões e a redução da pobreza. 

Em quarto lugar, a estrutura incongruente da economia global, na qual vários países são dependentes da produção e exportação de combustíveis fósseis, embora a atual extração e processamento sejam insustentáveis porque entram em conflito com a estabilidade do clima. Esta dificuldade é agravada pelo fato de que algumas economias dependentes do petróleo têm poucas alternativas exportáveis enquanto, ao mesmo tempo, grandes indústrias foram construídas em torno dos combustíveis fósseis, e as empresas líderes e os respectivos Estados não estão dispostas a aceitar as perdas ou custos necessários para financiar a transição para uma nova matriz energética global. 

Por fim, a financeirização levou a resultados disfuncionais, incluindo estratégias de acumulação de curto prazo e especulativas; volatilidade macroeconômica; baixas taxas de investimento, crescimento da produtividade, poupança, crescimento do PIB e criação de empregos; vulnerabilidade a crises e crescentes desigualdades de renda, riqueza, poder e provisão social. Sob a financeirização, os interesses econômicos dominantes operam em mercados vinculados a uma lógica de investimento pró-cíclico e de rápida extração de lucros, que tende a reforçar as estruturas econômicas existentes, manter a dependência do petróleo e aumentar as emissões de GEE. 

Portanto, o neoliberalismo financeirizado é incompatível com políticas industriais coordenadas, iniciativas de alto custo e longo prazo de maturação, transformações estruturais na atividade econômica, surgimento de novos motores de acumulação, adaptação e mitigação da mudança climática e (necessariamente, para reduzir o consumo de energia e trazer legitimidade às necessárias mudanças de política econômica) redistribuição de renda, riqueza e poder.

Ou seja, o próprio sistema resiste às mudanças rumo à sustentabilidade. Até agora, a maioria dos países tomou apenas medidas simbólicas para reduzir as emissões de GEE, enquanto as indústrias e o sistema financeiro tendem a adotar medidas calçadas na precificação de ativos ambientais e em modelos de supervisão financeira e de mercado. Como a lógica por trás dessa perspectiva é manter a alta rentabilidade do “Business as Usual”, evitando uma crise sistêmica, os processos de adaptação têm pouco efeito prático. Em outras palavras, o objetivo principal não é enfrentar a crise climática, mas manter a rentabilidade do sistema por meio de uma ordem neoliberal financeirizada que, ela mesma, aprofundou radicalmente a crise climática. 

A melhor maneira de diversificar a economia, construir modos alternativos de crescimento, coordenar ações globais e melhorar a distribuição de renda, riqueza e poder é combinar políticas industriais “verdes” com políticas macroeconômicas, sociais e financeiras democráticas. Para isso, o Estado deve atuar intencionalmente, direcionando o mercado, assumindo riscos, e impondo novas formas de comportamento econômico compatíveis com a estabilidade do clima e, como condição para tal, removendo os pilares da ordem neoliberal em geral, e da financeirização em particular. A transição verde sustentável precisa de transformação do sistema produtivo. Compete ao Estado alterar a estrutura e o funcionamento dos mercados e dos investimentos do setor privado. 

Esses processos de diversificação, mudança estrutural e mitigação são mais manejáveis nos países desenvolvidos do que nos subdesenvolvidos. Frente ao direito ao desenvolvimento pelos países subdesenvolvidos e à “dívida climática” (responsabilidade histórica pelas emissões), cabe aos países desenvolvidos suportar a parte mais significativa do custo da mitigação, até porque são eles que controlam maiores recursos financeiros e tecnológicos. Dessa forma, a mitigação da crise climática necessita incluir um processo de transferência de recursos e tecnologia entre os dois grupos de países. 

Adicionalmente, a transição verde sustentável requer altos níveis de investimentos tanto do setor público quanto do setor privado. Um sistema financeiro orientado pela missão de financiar esse processo requer instituições financeiras, especialmente bancos de desenvolvimento, que fujam da lógica curto prazista financeirizada. Cabe a eles, agentes com mandatos direcionados ao desenvolvimento, papel ativo nesse processo. Para tanto, serão necessárias instituições fortes e capitalizadas, que atuem em coordenação com o planejamento do Estado, dentro de um plano amplo de transição verde sustentável. 

Enfrentar a crise climática será difícil não apenas por razões técnicas ou mesmo por causa de preconceitos ideológicos. A principal restrição é a estrutura neoliberal financeirizada da economia global, que se baseia no abuso implacável da natureza. As raízes profundas da crise climática mostram que políticas eficazes para a combater serão custosas, complexas e resistentes, dado que tais políticas devem transformar o próprio processo de reprodução econômica. 

Clique e saiba mais sobre o Observatório da Economia Contemporânea no site do Instituto de Economia da Unicamp

 

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