Observatório da Economia Contemporânea

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A preocupante trajetória da distribuição funcional da renda no Brasil

É necessário que o governo adote medidas nesse sentido e a renda gerada volte a ser distribuída de forma mais favorável ao fator trabalho

Foto: Evaristo Sá/AFP
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A distribuição funcional da renda refere-se à repartição da renda gerada na economia pelos fatores utilizados na produção. O termo funcional indica que a distribuição da renda é determinada de acordo com a função desempenhada pelos agentes no processo produtivo, se proprietários de capital, da força de trabalho ou responsável pela arrecadação e alocação dos impostos. Tais relações contribuem para a avaliação dos padrões distributivos nas sociedades.

Considerando que as remunerações incluem os salários e as contribuições sociais recebidas pelos assalariados, e o excedente operacional é o rendimento das empresas (financeiras e não financeiras), dos proprietários de imóveis, de terras e de outros ativos; e que a renda gerada na economia também inclui o montante destinado aos impostos sobre a produção; as condições econômicas e sociais são determinantes para o resultado da distribuição funcional. Fatores como a organização e a estrutura produtiva, o montante e a forma de tributação, o valor do salário mínimo e o grau de organização sindical, bem como os efeitos de políticas econômicas, têm impactos sobre como a renda é distribuída entre os distintos agentes institucionais.

O estudo da distribuição funcional é importante sobretudo para países que historicamente apresentam renda desigual, como o caso do Brasil. Internacionalmente, este tema está no âmbito da Agenda 2030 para o acompanhamento de indicadores sociais, econômicos e ambientais dos países-membros da ONU. O indicador “participação das remunerações do trabalho no Produto Interno Bruto (PIB)” faz parte do Objetivo 10: “Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles”.

Como evoluiu a distribuição funcional no Brasil nos últimos anos? As decisões políticas que afetam a economia influenciaram de que forma a trajetória da participação da remuneração do trabalho? Para responder a essas perguntas, classificamos o período recente da história política brasileira em três intervalos que correspondem aos seguintes mandatos presidenciais: Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), Lula/Dilma (2003-2016) e Temer/Bolsonaro (2017 em diante)[1]. A partir desse recorte, verificamos se as distintas tendências políticas que governaram o País entregaram resultados diferenciados para a participação da remuneração do trabalho no PIB brasileiro.

Conforme apresentado no Gráfico 1, os resultados obtidos por meio da base de dados do Sistema de Contas Nacionais do IBGE indicaram que houve queda da participação da remuneração do trabalho de 1995 a 2004, sendo que após esse ano, ao contrário, houve tendência de crescimento até 2015. De 2016 em diante, entretanto, a remuneração do trabalho sobre o PIB assumiu trajetória inversa, com estagnação e posterior redução até 2020, último ano disponível até o momento.

Fonte: Sistema de Contas Nacionais, IBGE. Elaboração própria.

O declínio no primeiro intervalo temporal pode ser atribuído ao reflexo, no mercado de trabalho, da adoção de medidas econômicas contracionistas para a manutenção da estabilização dos preços após a implantação do Plano Real. Em uma primeira fase, de 1995 a 1999, pode-se destacar, entre elas, a abertura comercial e o câmbio apreciado, com o consequente aumento das importações, que trouxeram ainda uma reestruturação produtiva destruidora de empregos; as elevadas taxas de juros de toda a economia por um longo período; e a redução, em proporção ao PIB, do gasto público primário, estes já no período posterior a 1999.[2]

Em média, nos oito anos de 1996 a 2003, o País registrou baixo crescimento econômico (2,0% ao ano), resultado que refletiu também a intensificação das opções macroeconômicas restritivas por conta da vulnerabilidade externa da economia brasileira frente às crises observadas em países emergentes.[3] Tal conjuntura impactou severamente o mercado de trabalho brasileiro, que registrou aumento do desemprego e da informalidade e achatamento dos salários médios.[4] Embora o País tenha registrado variação positiva do PIB em 2000, problemas internos, como a crise energética do ano seguinte, o risco de descontrole inflacionário e a deterioração significativa das condições de endividamento público em 2002, evitaram que houvesse a manutenção do crescimento econômico, comprometendo também o ano de 2003.[5] Assim, a retomada do crescimento e a consequente recuperação do emprego e das remunerações na renda nacional vieram a ocorrer a partir de 2004.

Por sua vez, o comportamento favorável aos trabalhadores, entre 2004 e 2015, pode ser atribuído a fatores externos e internos. Em um primeiro momento, prevaleceram o crescimento da economia mundial e o aumento das exportações brasileiras, o que beneficiou a economia dos países emergentes. Entretanto, após a crise internacional de 2008 e a retração dos mercados mundiais, foram os aumentos reais do salário mínimo, a consolidação de programas sociais e a expansão do investimento público que estimularam a demanda doméstica e propiciaram o aquecimento da economia que, por sua vez, sustentou a criação de vagas formais no mercado de trabalho até o ano de 2014.

Embora tenha beneficiado o trabalhador, este aquecimento do mercado interno foi também positivo para empresas, pois as vendas de bens e serviços cresceram, assim como o excedente operacional se considerado em termos absolutos. Mesmo com a retração econômica em virtude da crise política no biênio 2015-16, a perda para os trabalhadores foi relativamente menor do que às das demais rendas, implicando em leve alta e tendência de estabilidade da participação de suas remunerações no PIB brasileiro.

A comparação internacional mostra que, em um ranking de aproximadamente 50 países da base de dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)[6], o Brasil avançou da 38ª para a 28ª posição na participação da renda do trabalho entre 2004 e 2015. Entretanto, com a reversão nos anos seguintes, o Brasil perdeu o que foi conquistado e retrocedeu para a 36ª posição no ranking em 2020. Nacionalmente, a participação da remuneração do trabalho retornou ao nível de 2010, revelando uma década perdida nesse indicador.

Após o prematuro final da gestão Dilma, em meados de 2016, uma série de políticas econômicas contrárias ao interesse dos trabalhadores foi rapidamente implementada. Dentre elas, destaca-se a reforma trabalhista, que tornou os trabalhadores mais vulneráveis com a possibilidade de terceirização irrestrita e a adoção dos contratos intermitentes de trabalho. O fim da regra de reajuste real do salário mínimo, referência para a maioria dos empregados formais e até mesmo informais, e a aprovação da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, que inibe o investimento e a geração de empregos fomentadas pelo Estado, foram duas outras medidas que prejudicaram a destinação da renda gerada aos trabalhadores.

O conjunto dessa obra iniciada no governo Temer e continuada no governo Bolsonaro trouxe nítido desaquecimento da economia, deterioração do mercado de trabalho e – talvez o pior dos efeitos – rigidez para que as rendas geradas pela atividade econômica sejam repartidas com mais equilíbrio entre capital e trabalho. A aprovação, já em 2021, da autonomia do Banco Central, órgão que define a taxa básica de juros vigente no País, foi mais uma medida que possibilita aos detentores de capital maiores margens na distribuição da renda.

Dessa forma, além de intensos, os efeitos contrários a uma melhor distribuição da renda poderão ser duradouros, independentemente do comando do Poder Executivo Federal. A indução do crescimento via gastos públicos é importante instrumento para qualquer país, sobretudo para os menos desenvolvidos e com alto grau de carências sociais, como o Brasil. A coordenação de políticas monetária e fiscal expansionistas e a efetiva distribuição de renda com programas sociais e com aumentos reais do salário mínimo, que impactam em parte dos programas sociais e nos salários médios da economia, bem como o fortalecimento da ação sindical com o objetivo de organizar o mercado laboral e proteger os trabalhadores são fundamentais para a retomada da melhoria da distribuição funcional da renda no Brasil.

Dessa forma, é necessário que o governo eleito adote medidas nesse sentido e a renda gerada volte a ser distribuída de forma mais favorável ao fator trabalho, responsável por cerca de 75% da renda total das famílias brasileiras. O governo Lula, marcado por ter conquistado, no passado, resultados positivos à classe trabalhadora, ao crescimento econômico e à melhor distribuição da renda precisa ser bem-sucedido no enfrentamento de tal desafio. Mas, dadas as dificuldades estabelecidas após anos de retrocessos político e institucional será necessário um amplo engajamento das forças progressistas para sua realização.

***

Referências

BALTAR, P. Estagnação da economia, abertura e crise do emprego urbano no Brasil. Economia e Sociedade, n. 6. Campinas: IE/Unicamp, 1996. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/images/arquivos/artigos/441/04-Baltar6.pdf

POCHMANN, M. Macroeconomia na distribuição da renda. Portal Terapia Política, publicado em 24/04/22. Disponível em: https://terapiapolitica.com.br/macroeconomia-na-distribuicao-da-renda/

[1]  Em artigo recente, Pochmann (2022) denominou os três períodos de mandatos presidenciais brasileiros como Neoliberal (1994-2002), Trabalhista (2003-2015) e Ultraliberal (2016 a 2022).

[2] Baltar (1996, pp. 97-98).

[3] Desde meados da década de 1990, alguns países experimentaram uma sequência de crises cambiais e financeiras: México (1994), Sudeste asiático (1997), Rússia (1998), Brasil (1999) e Argentina (2001).

[4] A taxa de desemprego passou de 6,7% para 9,7% e o rendimento médio do trabalho principal, em termos reais, reduziu-se em 12,5% de 1995 a 2004, segundo a Pnad/IBGE.

[5] Em 2002 a inflação anual alcançou 12,5% e 26,4%, medida pelo IPCA/IBGE e pelo IGP/FGV, respectivamente. O percentual médio da dívida pública em relação ao PIB ascendeu de 29,1%, em 1995, para 56,2%, em 2002, segundo o BCB.

[6] Ver: OECD Stats, em: https://stats.oecd.org/Index.aspx?datasetcode=SNA_TABLE1.

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