O Joio e o Trigo

Cúpula da Funai blindou projeto de agronegócio em terra indígena no Mato Grosso

Proteção dada por Brasília a fazendeiros e cooperativa Xavante atropelou servidores da área técnica, que só souberam do início da lavoura após vistoria na área desmatada

Imagem de drone mostra aldeia da etnia Xavante na Terra Indígena Pimentel Barbosa, no Mato Grosso. Foto: Marcos Hermanson
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Por João Peres, Marcos Pomar e Tatiana Merlino,  de Primavera do Leste e Barra do Garças

Documentos internos da Fundação Nacional do Índio (Funai) mostram que o órgão deu sua bênção a um projeto de plantio de soja, milho e arroz dentro da Terra Indígena Sangradouro, no Mato Grosso, e, para viabilizá-lo, atropelou e ignorou servidores locais.

Enquanto altas instâncias da autarquia ajudavam fazendeiros e indígenas pró-agro a implementar o projeto batizado de Independência Indígena, servidores da área técnica local, responsável pela TI Sangradouro, foram deixados sem informações.

Na realidade, os documentos mostram que os funcionários da Coordenação Regional Xavante (CR Xavante) – responsável por Sangradouro e outras terras da etnia Xavante – só tomaram conhecimento do início do projeto através de uma vistoria in loco realizada em dezembro de 2020.

Na ocasião, um servidor da CR Xavante constatou que cerca de mil hectares de terra no coração de Sangradouro haviam sido limpos para o plantio de arroz e que havia uma placa anunciando apoio da Funai ao projeto.


Em vídeo encaminhado à Brasília pela Funai de Barra do Garças em dezembro de 2020, servidor local constatou início da lavoura

Os termos

Documentos a que a reportagem teve acesso mostram que os Termos de Cooperação Técnica Agrícola – acordos firmados entre fazendeiros e indígenas que definiram os parâmetros para abertura da área da lavoura – estavam assinados desde março daquele ano, portanto nove meses antes da fiscalização, e que em maio a presidência da Funai já havia recebido dos indígenas um pedido de autorização para início do plantio.

Os contratos de parceria ainda passaram, em setembro, por uma extensa revisão por parte da Coordenadoria Geral de Promoção ao etnodesenvolvimento (CGETNO), da Funai de Brasília, que sugeriu uma série de alterações nos contratos.

Segundo fonte ouvida por O Joio e O Trigo, que preferiu se manter anônima por medo de represálias, a coordenadoria teve reuniões presenciais com fazendeiros e indígenas envolvidos no projeto – entre eles o sojicultor José Nardes, irmão do ministro do Tribunal de Contas da União Augusto Nardes – para discutir detalhes do projeto. À reportagem, Nardes confirmou que a ajuda do órgão indigenista foi fundamental: “O projeto foi feito dentro da própria Funai, com ajuda dos funcionários da Funai.”

Entre outras alterações, a CGETNO propôs que os contratos passassem a afirmar que a área destinada à lavoura “já se encontrava antropizada”, ou seja, sob efeitos de ações humanas, uma maneira de afirmar que não havia sido necessário desmatar o espaço voltado ao plantio. Os contratos originais, no entanto, descreviam a terra como “bruta, sem nenhuma benfeitoria”.

Imagem de drone mostra a área de plantio do projeto “Independência Indígena”, realizado com patrocínio da Funai de Brasília. Foto: Marcos Hermanson

Além da CGETNO, os contratos também passaram pela Procuradoria Federal Especializada, a PFE da Funai, chefiada pelo procurador da República Álvaro Simeão.

Em despacho emitido em setembro de 2020, Simeão deu parecer favorável aos acordos firmados entre fazendeiros e indígenas e chegou a sugerir que terras indígenas deveriam ter o mesmo percentual de preservação de mata nativa que propriedades rurais privadas – no Cerrado, o produtor rural deve preservar 35% de sua área.

“Na terra indígena em produção devem ser aplicados todos os normativos ambientais que se aplicam aos não índios”, escreveu o procurador no documento. “O percentual de mata nativa preservada deve ser o mesmo estabelecido para não índios.”

Em 16 de dezembro de 2020, quando o servidor Gustavo Sanches descobriu os mil hectares de solo limpos para o projeto Independência Indígena, ao menos três divisões da Funai de Brasília já tinham conhecimento do andamento do projeto e haviam colaborado diretamente com ele: o Gabinete da Presidência, em maio, a Coordenadoria Geral de Etnodesenvolvimento, em setembro, e a Procuradoria Federal Especializada, também naquele mês.

Os servidores da Coordenação Regional Xavante, no entanto, não sabiam de nada, ainda que pelo artigo 21 do Estatuto da Funai, caiba a eles a implementação de “ações de promoção ao desenvolvimento sustentável dos povos indígenas e de etnodesenvolvimento econômico”.

Os Termos de Cooperação Técnica Agrícola firmados entre os fazendeiros e a cooperativa indígena criada com fins de viabilizar o projeto, a Cooigrandesan, só foram remetidos à CR Xavante em fevereiro de 2021, depois de dois pedidos e dois meses de espera.

Quando os servidores da área técnica local souberam que, pelos termos de cooperação, caberia à Funai “dar anuência” à abertura da área, perguntaram a Brasília como se daria esse processo de autorização e qual seria o papel da coordenadoria local nos trabalhos.

Mas a resposta nunca veio. Nada menos que três ofícios foram enviados entre maio e dezembro de 2021, reiterando os mesmos questionamentos, sem qualquer resposta.

Naquele momento, a CR Xavante também aguardava resposta de uma denúncia de arrendamento de terra na região norte de Sangradouro, encaminhada à Brasília em abril de 2020 e respondida apenas em março deste ano.

Coordenador regional dá uma mãozinha para cooperativa indígena 

O capitão da reserva Álvaro Luis de Carvalho Peres é coordenador da CR Xavante desde 2019.

Conhecido por ter agredido um cacique xavante dentro da sede local da Funai de Barra do Garças em maio de 2021, ele se refere a José Nardes – um dos fazendeiros arrendatários da área – pelo apelido carinhoso de “Seu Nardes”, segundo fontes ouvidas pelo Joio, que preferiram manter o anonimato por medo de represálias.

Em dezembro de 2021, servidores do Segat, o Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da Coordenação Xavante, começaram a emitir questionamentos à Cooigrandesan, pedindo prestação de contas e documentação trabalhista dos funcionários envolvidos na lavoura, entre outras informações.

Vencido o prazo de resposta, a cooperativa pediu que Álvaro concedesse mais alguns dias para que as informações fossem encaminhadas. O coordenador aceitou o pedido, oferecendo três meses de prazo extra.

Os três meses passaram, mas nenhuma resposta chegou. O Segat então elaborou um novo ofício, em maio de 2022, a ser assinado pelo coordenador e remetido à Cooperativa, reiterando o pedido de informações e concedendo mais nove dias de prazo. Peres encaminhou o ofício, mas alterou o prazo para trinta dias.

A cooperativa perdeu o prazo ainda outra vez, e o mesmo processo se repetiu: O Segat elaborou um modelo de ofício, a ser respondido em regime de urgência, no prazo máximo de três dias. O coordenador subscreveu o ofício elaborado por seus subordinados, mas alterou o prazo outra vez, concedendo mais trinta dias para retorno – vencidos no dia 30 de junho.

Até o momento, a resposta da Cooperativa não chegou. Álvaro Peres foi procurado pela reportagem, mas declinou os nossos pedidos de entrevista.

Em julho, os fazendeiros envolvidos no projeto Agro Xavante foram multados pelo Ibama por desmatamento ilegal em terra indígena e tiveram suas lavouras embargadas.

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