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Falas de Boninho e Wanessa mostram a complexidade do racismo no BBB24

Ao questionar a legitimidade das reações ou sentimentos de Davi, participantes brancos e, agora, a direção do programa, estão exercendo uma forma de poder que invalida a perspectiva negra

Davi Brito Santos, participante da 24ª edição do Big Brother Brasil. Foto: Reprodução/ Globo
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A branquitude, força dominante dentro e fora da casa do Big Brother Brasil, manifestou-se outra vez no reality através de interações que, embora possam não ser imediatamente reconhecidas como violentas, carregam consigo o peso da opressão racial. O participante Davi Brito, sob pressão psicológica crescente — a partir de atitudes racistas veladas e negligenciadas pela produção — encontrou-se em um momento de vulnerabilidade aguda, cogitando a desistência do programa.

Nesse ínterim, uma voz, atribuída ao diretor do BBB, Boninho, conversou em tom de advertência carregada de paternalismo: “Você sabe que você saindo você perde tudo? Você tem consciência disso? Você perde a faculdade, perde tudo”, disse, em áudio que vazou. A interação sublinha uma falsa benevolência da branquitude, e destaca a manipulação emocional exercida para manter Davi no jogo, usando a bolsa de estudos — um “presente” de Wanessa Camargo que, minimizando seu próprio gesto, sugeriu que Davi deveria retribuir a “gentileza” deixando o reality: “Ele já conseguiu a faculdade. O que ele ainda tá fazendo aqui?”, questionou a participante.

Davi é exemplo da interseccionalidade das opressões, conceito que ajuda a entender como diferentes formas de discriminação – racismo, classismo, sexismo, entre outras – se sobrepõem e interagem. A interseccionalidade explica, por exemplo, porque há outros participantes negros no programa que não são vítimas de perseguições. Por exemplo, um jovem negro de uma comunidade de baixa renda pode enfrentar não apenas o racismo, mas também o classismo, que limita seu acesso a oportunidades educacionais, empregos bem remunerados e moradia segura. Se esse jovem também for uma pessoa LGBTQ+, ele pode enfrentar ainda mais discriminação devido à sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Ao questionar a legitimidade das reações ou sentimentos de Davi diante de situações de conflito ou tensão, participantes brancos e, agora, a direção do programa, estão exercendo uma forma de poder que invalida a perspectiva negra. A fala de Boninho reforça a ideia de que pessoas negras devem estar constantemente gratas por oportunidades que são vistas como naturais para pessoas brancas, perpetuando assim uma desigualdade inerente que beneficia a branquitude.

A violência implícita na ameaça de “perder tudo” direcionada a Davi carrega uma carga emocional e psicológica especialmente quando contrastada com a realidade dos participantes brancos e famosos. O contraste revela as disparidades raciais e socioeconômicas inerentes não apenas dentro do contexto do programa, mas refletindo a sociedade em geral. Para um jovem negro, motorista de aplicativo, “perder tudo” significa muito mais do que a saída de um reality show. Significa perder a oportunidade que tem potencial de alterar significativamente seu padrão de vida, suas perspectivas de futuro e sua capacidade de quebrar as barreiras impostas por uma sociedade estruturada em desigualdades raciais e econômicas. A bolsa para cursar medicina não é apenas um prêmio; é a chave para uma trajetória de vida, longe das limitações impostas pelo seu contexto socioeconômico. A pressão para não “perder tudo” é imensamente maior porque as alternativas e seguranças fora do programa são incomparavelmente mais limitadas.

Em contraste, participantes como Wanessa Camargo não enfrentam o mesmo nível de risco ao participar do BBB. Sua presença no programa é menos uma necessidade e mais uma escolha que pode, no máximo, complementar sua carreira. A ideia de “perder tudo” não carrega o mesmo peso, sua posição socioeconômica e seu capital social garantem uma rede de segurança que Davi simplesmente não possui. Se optasse por desistir, sua vida e carreira continuariam relativamente inalteradas, sem o risco de perder oportunidades transformadoras de vida. Esses ingredientes tornam o “você sabe que você saindo você perde tudo?” uma sentença tão severa quanto cruel.

A oferta de uma bolsa de estudos por Wanessa Camargo a Davi traz à tona questões complexas sobre o poder e as dinâmicas de opressão racial. Embora à primeira vista possa parecer benevolente, a ação reforça estruturas desiguais e perpetua uma forma de opressão quando analisada sob a lente da interseccionalidade e das relações raciais. Persiste a ideia problemática de que para pessoas negras serem dignas de assistência ou reconhecimento, devem se enquadrar em critérios estabelecidos por pessoas brancas, muitas vezes baseados em noções de respeitabilidade, conformidade ou gratidão.

Isso coloca um ônus injusto sobre pessoas negras, a pressão de se moldar a essas expectativas para serem consideradas “merecedoras” de oportunidades, perpetuando uma forma de controle social que limita a expressão autêntica e a liberdade. A situação reflete a complexidade do racismo benevolente, onde ações aparentemente positivas podem reforçar a supremacia branca e a desigualdade racial. Ao posicionar pessoas brancas como salvadoras na narrativa de progresso de pessoas negras, se fortalece a ideia de que a igualdade racial é uma concessão da branquitude, ao invés de um direito inerente.

A mídia frequentemente romantiza a “generosidade” da elite branca, apresentada como solução nobre para as desigualdades sociais. Convenientemente, ignora o papel dessa mesma elite na perpetuação e manutenção das desigualdades. Esse fenômeno não apenas eleva indivíduos privilegiados a um pedestal de benevolência, mas também desvia a atenção das estruturas sistêmicas de poder que fundamentam a desigualdade racial e econômica. Ao focar nas “boas ações” isoladas de figuras da elite branca, a narrativa midiática falha em questionar as origens da riqueza e do poder desses indivíduos e como esses fatores contribuem para a manutenção de um status quo desigual.

A “benevolência” de Wanessa Camargo e a ameaça do Big Boss refletem e reforçam as desigualdades raciais e sociais, mantendo intactas as barreiras que segregam a sociedade entre aqueles que têm o poder de conceder favores e aqueles que são posicionados para recebê-los, colocando a branquitude como guardiã dos recursos e oportunidades, e a negritude em um papel de dependência e subordinação.

A postura ilustra como pessoas negras são frequentemente transformadas em objetos da falsa benevolência da branquitude. A ameaça de “perder tudo”, proferida por uma voz de autoridade, é mais que um lembrete das condições impostas pela participação em um reality show: simboliza a precariedade mais ampla enfrentada por pessoas negras em diversos contextos sociais, revelando uma estratégia sutil de controle e dominação. A dinâmica espelha as práticas coloniais de cooptação e assimilação. O “perder tudo” torna-se uma metáfora para a experiência de negritude sob a branquitude dominante, onde a liberdade e a autenticidade são constantemente ameaçadas pela exigência de conformidade e subserviência.

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