Justiça

População LGBTQI+ e Covid-19: a ampliação do abismo das desigualdades

A comunidade LGBTQI+ tem sido uma das mais impactadas pela pandemia tanto no âmbito social, como em relação à saúde mental.

O arco íris visto à longa distância foi projetado na noite paulistana no último dia 14, data da Parada LGBTQI+, cancelada devido ao Covid 19. O arco íris foi obra artística de Yvette Mattern. Foto: Nelson Almeida/AFP
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A pandemia ocasionada pela COVID-19 trouxe uma série de efeitos nefastos sobre a população mundial, mudando a forma de as pessoas se comunicarem, relacionarem e viverem. Passamos a conviver com a angústia do medo de contágio, as sequelas da doença e da morte. Acarretou também uma crise socioeconômica sem precedentes, atingindo todas as camadas da sociedade. Entretanto, os impactos não são iguais para todas as pessoas, pois a pandemia escancara as desigualdades, principalmente no Brasil, que apresenta um desequilíbrio histórico na distribuição de renda.

E, sabemos, a comunidade LGBTQI+ foi uma das mais atingidas, posto que compõe parcela significativa nos grupos de vulnerabilidade social, notadamente considerando que a atual representação do governo brasileiro é marcada por um discurso homofóbico e transfóbico, incitando o ódio à diversidade e fazendo com que a comunidade LGBTQI+ não se sinta representada, mas constantemente hostilizada.

 

Há uma tentativa de associar a posição político-partidária à defesa de um debate para além dos estereótipos de gênero. Para piorar, a ausência de estímulo a uma educação voltada para a diversidade de gênero e sexual impede a construção de uma sociedade mais livre e a ampliação de garantias a este grupo, composto de cidadãos com igualdade de direitos em relação aos demais.

Ou seja, o atual governo propaga um apartheid de gênero, firmando uma ideologia de estereótipos em que a distinção de gênero seria ridiculamente representada por cores.

Essa condução preconceituosa no cenário atual faz com que a população LGBTQI+ se sinta acuada, já que encoraja um posicionamento de intolerância à diversidade e estimula uma atuação violenta de parte da população que defende o atual governo.

O Grupo Gay da Bahia (GGB) realizou estudo constatando que há uma morte, a cada 23 horas, por homofobia no Brasil. Esse estudo se deu com base em notícias publicadas em veículos de comunicação, informações de parentes das vítimas e registros policiais. Assim, em razão da inexistência de estatísticas governamentais sobre tais mortes, eles reconhecem que, certamente, os números sejam subnotificados.

Em face da violência direcionada à população LGBTQI+, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em julho de 2019, que a LGBTfobia deve ser equiparada ao crime de racismo até que o Congresso Nacional discipline a matéria. O crime de violência é inafiançável e imprescritível, cuja pena é de até 03 anos.

Entretanto, os números não recuam. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), no primeiro quadrimestre de 2020, houve um aumento de 48% nos números de assassinatos de pessoas transexuais. A associação também destacou que, nos primeiros meses do ano, o Brasil apresentou aumento de 90% no número de casos de assassinatos em relação ao mesmo período de 2019. Em 2019, foram 20 casos e, em 2020, 38 notificações, o que já supera os números de 2017, ano em que o país apresentou o maior índice de assassinatos de sua história, conforme o Atlas da Violência e Anuário da Segurança Pública, colocando-se como sendo o que mais mata transexuais e travestis no mundo.

Os números causam estranhamento, considerando que se referem, em parte, ao período de suposto isolamento social. Ocorre que a população trans é uma das maiores vítimas da violência urbana, em grande parte por atuarem nas ruas, já que enfrentam barreiras para integrar o mercado de trabalho.

Segundo a ANTRA, cerca de 90% encontra como meio de sobrevivência a prostituição, estando mais expostos à violência.

Tal situação, em meio à pandemia, implica em maior exposição à contaminação. A imunidade da população transexual que se prostitui é muito baixa, ante a recorrente utilização de hormônios e a exposição aos riscos decorrentes da atividade sexual, o que as caracteriza como potencial grupo de riscos e vetores de transmissão do coronavírus.

Por essas razões, a subsistência se torna um dos maiores desafios da população LGBTQI+ no enfrentamento aos efeitos da COVID-19. A falta de oportunidades, decorrentes de uma concorrência desleal promovida pelos estigmas e prejulgamento, atinge diretamente a sua saúde mental e amputa as esperanças numa ocupação de espaço no mercado de trabalho. Essa realidade faz com que protagonizem o mercado informal, sem qualquer tipo de benefício ou segurança de emprego.

Na contramão da emergência por políticas de inclusão que o cenário de isolamento impõe, as medidas do governo na administração da crise do mercado de trabalho priorizam o Capital, além de promoverem uma negação acerca da gravidade da situação posta, o que resultou na ausência de ações e programas voltados a essa população, limitando-se a proteger a classe burguesa que efetivamente representa. O governo escancara o caráter classista, racista e sexista da sua atuação, em que a diversidade não é tolerada, tampouco contemplada.

A falta de proteção e amparo por meio de projetos sociais e programas assistenciais específicos destinados a tal grupo, dentre os implementados por ocasião da epidemia, amplia a desigualdade de oportunidades à população LGBTQI+. Como alternativa, busca-se a implementação de projetos dentro da própria comunidade para movimentar recursos, num sistema de colaboração mútua aos seus pares, com dificuldades financeiras, uma vez que não podem contar com o Estado. Essa situação potencializa a sua segregação, através da cultura de um mercado paralelo, dentro da própria comunidade.

Outro aspecto agravado pela Pandemia é a saúde mental dessa população. Dentre as repercussões psicossomáticas trazidas por uma sociedade acometida por uma pandemia, traumas e marcas desta experiência perdurarão por muitos anos, como o abalo pela perda de familiares, patrimônio e emprego. Na população LGBTQI+, esses sentimentos serão agravados pelo preconceito e pela exclusão social. A ausência do sentimento de pertencimento ao todo, na luta em combate à doença, afasta a esperança de recuperação e a certeza de que realmente “vai passar”. Em meio a esta crise de identidade e representatividade, a depressão está sempre presente.

A exposição da comunidade LGBTQI+ aos efeitos da COVID-19 pode ser vista em todos os setores, inclusive o relacionado à saúde, em que o grupo é visto com preconceito e comumente classificado como grupo de risco, em função da orientação sexual, durante o pronto atendimento médico. As indagações para suposta realização de anamnese são distintas das realizadas à população heterossexual, e associadas em sua grande maioria à promiscuidade.

Ainda no campo da saúde, a comunidade trans e intersexuais faz uso regular de medicação como cuidados de afirmação de gênero. Porém, em meio à pandemia, os sistemas de saúde estão sobrecarregados e com dificuldade no fornecimento da medicação, o que impactará diretamente no tratamento dessas pessoas. Sem falar que as cirurgias de redesignação sexual são classificadas como eletivas e estão suspensas neste período, havendo um desequilíbrio na saúde mental das transexuais, de origem clínica e psíquica, em razão da afirmação de identidade. Ressalta ainda que uso de hormônio e medicações relacionadas à redesignação sexual maximizam os riscos de desenvolvimento de câncer e, consequentemente, elas têm o sistema imunológico comprometido, estando mais vulneráveis ao vírus.

Considerando os riscos e efeitos decorrentes da COVID-19, observa-se que a comunidade LGBTQI+ é uma das mais impactadas tanto no âmbito social, como em relação à saúde mental. Além de enfrentar os dramas inerentes à situação socioeconômica da pandemia, convivem com a violência e com o preconceito social, os quais neste momento estão mais latentes e extremados do que nunca. Esta análise alerta para a necessidade de medidas específicas de proteção e assistência à comunidade LGBTQI+, marcada pela desigualdade estrutural e caracterizada pela vulnerabilidade social.

Precisam ser assistidos por políticas públicas, assegurando-lhes um mínimo de dignidade, bem como o direito à vida e à saúde.


Fontes:

BENEVIDES. Bruna. Assassinatos a pessoas trans voltam a subir em 2020. Antra Brasil.org. Porto Alegre, 03 de maio de 2020. Disponível em < https://antrabrasil.org/assassinatos/> Acesso em  11 de junho de 2020.

MOTT. Luiz. RELATÓRIO DE MORTES VIOLENTAS DE LGBT+ NO BRASIL. Disponível em < https://grupogaydabahia.files.wordpress.com/2019/01/relat%C3%B3rio-de-crimes-contra-lgbt-brasil-2018-grupo-gay-da-bahia.pdf>

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