Intervozes

Quatro anos do vazamento de petróleo: uma tragédia-crime sem explicação e sem reparação

Territórios pesqueiros organizados na campanha Mar de Luta buscam quebrar o silêncio da mídia e a falta de respostas do Estado

Manchas de óleo já atingem 996 pontos em praias do Nordeste e Sudeste (Imagem: Divulgação)
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30 de agosto de 2019. A partir daquela sexta-feira, centenas de comunidades e povos que praticam modos de vida em harmonia com os mares, praias, rios e mangues enfrentam mais uma tragédia-crime socioambiental que, como tantas outras, segue sem políticas efetivas de reparação. E não foi qualquer tragédia, mas a maior já registrada na costa brasileira. Não apenas as comunidades foram profunda e negativamente impactadas, mas todo o ecossistema das águas foi afetado, com consequências até os dias de hoje, quatro anos depois. É para dizer que não haverá esquecimento, e para exigir reparação, que a Campanha Mar de Luta segue viva e atuando para que o Estado brasileiro promova justiça socioambiental para as populações atingidas.

A Mar de Luta é uma iniciativa social e popular que foi criada para reivindicar os direitos das comunidades pesqueiras, sendo composta por defensores(as) dos direitos ambientais, direitos humanos e das comunidades pesqueiras artesanais impactadas pelo crime. A campanha busca sensibilizar a sociedade sobre a gravidade do ocorrido, cobrar uma verdadeira responsabilização dos culpados, reivindicar ações de reparação adequadas e pautar soluções para prevenir futuros desastres semelhantes.

Uma das frentes da campanha é lembrar a sociedade que o crime ambiental de 2019 foi devastador para o país, sobretudo para as comunidades pesqueiras: atingiu os nove estados do Nordeste e dois do Sudeste – Espírito Santo e Rio de Janeiro –, alcançou cerca de mil localidades, afetando os modos de vida de, aproximadamente, quinhentos pescadores e pescadoras artesanais, responsáveis pela produção de mais de 60% do pescado que chega à mesa das famílias da região nordeste.

Foram cinco mil toneladas de petróleo retiradas das praias, corais, rios e mangues, somente entre os meses de outubro e dezembro de 2019. Na ação-omissão da gestão do governo federal à época, vale frisar que em muitas localidades foram os próprios moradores(as) que recolheram as manchas de petróleo das faixas de areia da praia, sem equipamentos adequados e expostos aos riscos de contaminação, o que afetou a saúde de diversas pessoas.

As consequências impactaram fortemente na economia das comunidades. Pescadoras, marisqueiras e pescadores não puderam comercializar e consumir os produtos marinhos, afetando o sustento e a subsistência dos povos originários que sobrevivem das águas. A situação foi agravada nos anos de 2020 e 2021 com a pandemia de Covid-19, resultando em fome para diversas famílias. A situação de insegurança alimentar, adoecimento e violação de direitos tem sido aprofundada ainda pela pressão sócio econômica dos empreendimentos de energia renovável que avançam sobre os territórios de vida aceleradamente.

Tudo isso, historicamente e culturalmente, é um peso contra a reprodução dos modos de vida dos “guardiões e guardiãs” das águas”, pois é desses lugares que são retirados os meios necessários para o viver – material e simbólico – das pescadoras e pescadores artesanais.

Reivindicações

Neste mês de agosto, a Campanha Mar de Luta convida a sociedade a lembrar desse sombrio acontecimento e se unir a essa jornada de reflexão, luta e reparação. A cobrança principal dos movimentos sociais de pescadores e pescadoras artesanais e organizações ligadas às temáticas de direitos humanos e socioambientais é, sobretudo, que os poderes públicos federal, estaduais e municipais deem respostas sobre a tragédia-crime e implementem ações capazes de reduzir e enfrentar os efeitos nefastos do vazamento de petróleo cru na costa brasileira. Os eventos promovidos pela campanha culminam com um ato público em Brasília, em 30 de agosto.

Entre as principais reivindicações da campanha, estão: a responsabilização do Estado pela ausência de respostas concretas para esse grave dano socioambiental;  a aplicação do Plano Nacional de Contingência (PNC) para incidentes de poluição por óleo; a realização de investigações e estudos para apuração dos responsáveis pelo derramamento do petróleo; o desenvolvimento de pesquisas autônomas que deem transparência na divulgação dos dados sobre a poluição, a contaminação do meio ambiente (espécies, oceanos e praias), os impactos socioeconômicos e à saúde, além da revelação dos verdadeiros culpados pelo vazamento do petróleo; a implementação de processo amplo e rigoroso de avaliação e monitoramento das praias, mangues e oceanos, com especial atenção para o monitoramento da exploração de petróleo na costa brasileira; o impedimento da abertura de novos poços de petróleo em alto mar; a criação de um pensamento crítico em relação a esse tipo de atividade e os impactos que gera na vida dos pescadores e pescadoras artesanais; e a efetivação de mudanças na atual política ambiental em curso no Brasil.

A Mar de Luta também faz duras críticas em relação ao governo Bolsonaro, que estava na gestão do País na época do vazamento de petróleo, e ao então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, este que na época do vazamento teve postura “espantosa” em relação ao controle do desastre, com a falta de transparência nas informações, a ausência de planejamento coordenado para acionar e aplicar o Plano Nacional de Contingência para Incidentes com Óleo, além do descaso com as comunidades pesqueiras e com a fauna e flora marinhas.

De acordo com lideranças da Campanha Mar de Luta, “isso comprova que a política de Estado do (des)governo Bolsonaro para o meio ambiente foi de destruição da natureza e de toda a vida que a circunda e a compõe, inclusive a humana, fato materializado pela presença de um ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que atuou a todo momento para flexibilizar a legislação ambiental, omitindo diante de inúmeros crimes ambientais de toda ordem e, também, contra aqueles que dão suas vidas historicamente para a proteção de seus territórios”.

Vozes Silenciadas

A negligência do governo Bolsonaro durante a tragédia socioambiental também foi evidenciada na pesquisa Vozes Silenciadas: a cobertura do vazamento de petróleo na costa brasileira, lançada em 2020 pelo Intervozes. Embora o estudo tenha analisado o comportamento da mídia sobre o desastre nas águas, a estratégia de desinformação e má-fé de gestores do governo federal em abordar o caso foi gritante. Nem mídia nem poderes públicos, com raras exceções, encararam a tragédia-crime como deveriam.

A pesquisa analisou 325 matérias de mídia impressa, televisiva e digital, em veículos de natureza comercial e pública, selecionados por terem maiores índices de audiência em seus segmentos ou alto volume de tiragem. Assim, de abrangência nacional, foram estudados: Folha de S. Paulo, O Globo, O Estado de S. Paulo, Jornal Nacional (Rede Globo),  Jornal da Record (Grupo Record), SBT Brasil (SBT) e Agência Brasil (Empresa Brasil de Comunicação – EBC). Já os veículos regionais investigados foram: Diário do Nordeste (Ceará), Jornal do Commercio (Pernambuco), A Tarde (Bahia) e Estado do Maranhão (Maranhão).

Um dos resultados do estudo foi a constatação do silenciamento das comunidades pesqueiras e organizações da sociedade civil nas coberturas, com uma opção majoritária da mídia pelo jornalismo declaratório, aquele que reproduz vozes oficiais e não se aprofunda em reportagem investigativa. Em média, 60% das vozes ouvidas foram de autoridades públicas, em especial da Marinha, sendo apenas 5% de pescadoras/es, marisqueiras, quilombolas, entre outros grupos diretamente atingidos pelo derramamento de petróleo cru. A ciência e a legislação ambiental, fundamentais para abordar o tema, não foram valorizadas como deveriam na maioria das matérias e reportagens.

Em verdade, mais parecia que a mídia privado-comercial e o governo federal faziam parte de um mesmo projeto de abordar o assunto de forma secundária e vazia. Para se ter uma ideia, os meios de comunicação nacionais estudados apagaram o assunto durante o primeiro mês de aparecimento do petróleo cru nas águas e praias. Entre as coberturas mais problemáticas estavam as repercussões midiáticas de boatos de redes sociais, quando entes governamentais disseminavam desinformação sobre o vazamento de petróleo. Isso ocorreu, por exemplo, quando Ricardo Salles e o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro chegaram a culpar o Greenpeace e um navio venezuelano pelo crime socioambiental, muitas vezes divulgando essas provocações através dos seus perfis pessoais no Twitter.

Quatro anos depois, não podemos permitir, como parecem fazer os meios de comunicação analisados na pesquisa Vozes Silenciadas, que a memória desse crime seja apagada, afinal, seus impactos ecoam ainda hoje. É nosso dever como sociedade relembrar o que aconteceu, honrar as vítimas e as lutas daqueles que perderam tudo e, ainda mais, cobrar justiça socioambiental e reparação. É com este objetivo que a Campanha Mar de Luta preparou uma série de atividades, com o tema: “Recordar o crime do petróleo, resistir no presente e lutar pelo futuro”.

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