Intervozes

Policialescos são campeões em desinformação e violação de direitos

MPF, movimentos sociais e coletivos atuam para coibir violações de direitos e fazer valer marco regulatório das comunicações

Programa Rota da Notícia. Foto: Reprodução
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Após três anos, o Ministério Público Federal (MPF) na Paraíba ajuizou, no último dia 4 de junho, uma ação civil pública pedindo a condenação do apresentador de programas policialescos, José Siqueira Barros Junior, conhecido como Sikêra Jr., por dano moral coletivo decorrente de discurso de ódio às mulheres.

Na ação, o MPF pede à Justiça Federal que o apresentador pague uma indenização no valor de 200 mil reais à mulher negra que foi ofendida, e ainda 2 milhões de reais a entidades do movimento feminista ou de promoção dos direitos humanos ou, de maneira alternativa, ao Fundo Nacional de Direitos Difusos. O valor deve ser atualizado com juros.

E não para por aí. O apresentador terá que se retratar publicamente, reconhecendo os ilícitos praticados em sua fala, que deve ser publicada em suas redes sociais e na TV Arapuan – emissora onde ele era apresentador quando praticou as ilicitudes, com duração não menor que 2 minutos e 47 segundos, tempo em que ele proferiu as ofensas. A retratação deve ser feita no mesmo horário em que o apresentador proferiu as agressões às mulheres, entre 12h e 13h, durante sete dias e o início deve ocorrer em até dez dias, após a intimação do trânsito em julgado da ação.

O conteúdo da retratação deve ser previamente aprovado pelo MPF e por pessoas ou instituições que também participarem do processo como amicus curiae (que auxiliam o tribunal com esclarecimentos sobre questões essenciais ao processo). Caso descumpra a sentença condenatória, o apresentador estará sujeito a pagar multa diária acima de R$ 10 mil reais. Por isso, também foi pedido à Justiça Federal que intime a Defensoria Pública da União e associações civis representativas de movimentos feministas e do direito à comunicação para integrarem o polo ativo ou participarem do processo, como amicus curiae.

As violações praticadas por Sikêra Jr aconteceram em 2018, quando ele apresentava o policialesco “Cidade em Ação”, na TV Arapuan, afiliada a Rede TV!, em João Pessoa. Na ocasião, o movimento feminista local e o Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação (Findac) acionaram o MPF, denunciando o discurso de ódio racista e misógino do apresentador. O órgão firmou com a emissora um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), comprometendo-se a veicular em sua programação no período de cinco meses (agosto a dezembro de 2018), de segunda a sexta, material em formato publicitário com duração de 30 segundos, difundindo conteúdo sobre os direitos humanos das mulheres. Foram produzidos seis VTs, um programa educativo e entrevistas com representantes do movimento feminista, secretaria de Mulheres da Prefeitura e do Estado da Paraíba e de organismos de defesa dos direitos do cidadão, como os Ministérios Públicos Federal, Estadual e as Defensorias Públicas.

O movimento feminista também realizou manifestações em frente à emissora, cobrando uma posição em relação a manutenção de Sikêra como apresentador de TV, visto que ele continuou violando direitos numa concessão pública.

Poucos meses após a vigência do TAC, o apresentador deixou a Paraíba e foi para Manaus. De acordo com o procurador da República, José Godoy, foram levadas em consideração várias possibilidades para que o MPF desse entrada na ação, com amparo na jurisprudência, doutrina e na legislação. “Estava previsto no TAC que firmamos com a Arapuã em 2018 que aquele acordo não impediria o MPF de buscar a responsabilização civil e criminal contra o apresentador. Por isso, mantivemos o procedimento ativo para ajuizar posteriormente, como foi feito no último dia 4 de junho. Entendemos que as chances de uma punição adequada são boas”, explicou o procurador.

Campeão de violações e processos

Sikêra Jr. responde a diversos processos judiciais. Um deles movido pela apresentadora Xuxa Meneghel por apologia a pedofilia, quando o mesmo exibiu a cena de uma égua sendo violentada por um homem. A imagem grotesca e que viola a legislação brasileira referente à radiodifusão no Brasil foi exibida durante o programa “Alerta Nacional”, que ele apresenta diariamente na cidade de Manaus, no estado do Amazonas, sob a responsabilidade da TV A Crítica, também afiliada da Rede TV!.

O processo foi registrado na Vara Cível do Fórum Regional de Santo Amaro, no estado de São Paulo. Além de pedir indenização no valor de 500 mil reais, Xuxa Meneghel pede a suspensão do registro profissional de Sikêra e a retirada do ar do policialesco “Alerta Nacional”, sob pena de multa diária de 20 mil reais para cada episódio que seja exibido.

Em outro processo, o apresentador teve que pagar uma indenização de R$ 30 mil reais, por danos morais, à modelo trans Viviany Beleboni. Ele usou a imagem da modelo, relacionando-a a um casal de lésbicas que havia matado uma criança. O caso foi julgado pelo juiz Sidney da Silva Braga, da 4° Vara do Foro Central Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, que puniu o apresentador do policialesco. Infelizmente, no dia 10 de maio de 2021, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu ganho de causa ao apresentador. Sobre isso, Gyssele Mendes e Thiago Coutinho, do coletivo Intervozes, escreveram um artigo para este blog, mostrando os riscos da decisão do TJ de São Paulo em sobrepor a liberdade de expressão a outros direitos assegurados.

Violações recorrentes

Porém, não é apenas Sikêra Jr. que viola sistematicamente legislações referentes aos direitos humanos e ao marco regulatório das comunicações brasileiras. No dia 28 de abril de 2021, o repórter Emerson Machado, no programa policialesco “Correio Verdade”, da TV Correio, afiliada à RecordTV, atacou os praticantes do candomblé ao relacionar os suspeitos do feminicídio da jovem pernambucana, Patrícia Roberta, ocorrido no dia 25 de abril, com a religião de matriz africana. Em um dos trechos da reportagem, Emerson Machado diz, “Segundo informações, o Marcos já participava de candomblé, né, dessas tribos, negócio de candomblé (…). O acusado já participava também desse negócio de magia, de candomblé, já participava desses encontros, aqui mesmo nessa casa”.

Logo após a narrativa do repórter policial ser exibida, pai Zyel de Omolu, do terreiro Ilê de Oxossi, em João Pessoa, usou as suas redes sociais para repudiar a fala de Emerson Machado. Para pai Zyel, o repórter cometeu racismo religioso. “Os comentários do repórter são pejorativos, deixando subentendido que o suspeito fazia parte de religiões de matriz africana, associando o suspeito de assassinar Patrícia e os cultos de candomblé, causando dessa forma fomento à perseguição de pessoas oriundas de outras religiões, alimentando preconceito e intolerância religiosa aos povos de matriz africana”, diz Zyel em sua publicação. O corpo de Patrícia Roberta, de apenas 22 anos, foi encontrado em uma mata no bairro de Gramame e a causa de sua morte, constatada em laudo do Instituto Médico Legal, foi asfixia.

O sacerdote de Candomblé, Doté Cleyton de Sogbo, de um terreiro na cidade de Santa Rita, deu entrada em uma representação no Ministério Público Federal contra o repórter Emerson Machado por causa dessa reportagem. No documento, o sacerdote cita algumas legislações violadas pelo repórter do policialesco, como o artigo 6°, inciso XIV, do Código de Ética dos Jornalistas, que orienta o profissional de comunicação a “combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza”. Cleyton, que é radialista e estudante de Jornalismo, disse que se sentiu vilipendiado, enquanto afro-religioso e sacerdote, e enquanto profissional da imprensa. “As empresas de comunicação são concessões públicas, e para tal, não devem agir nem permitir que no seu âmbito de atuação ocorram fatos que corroborem para atos de machismo, racismo, homofobia, sexismo ou qualquer outro tipo de preconceito”, diz o sacerdote em um dos trechos da representação.

O repórter do Correio Verdade também violou o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), que em seu artigo 26 diz que os meios de comunicação não podem difundir ideias, imagens ou ter abordagens que exponham pessoas ou grupo ao ódio e ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matriz africana. O estatuto determina que o poder público deve adotar medidas necessárias para o combate à intolerância religiosa com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores.

No mesmo programa, exibido no dia 27 de abril, a perita Amanda Melo, em entrevista ao repórter David Martins, diz que encontrou no apartamento do suspeito de matar Patrícia, “livros de magia negra” e que “eles estavam repousados numa espécie de altar”. O lettering exibido pelo programa durante o ao vivo dizia: “Durante perícia: livro de magia negra é encontrado em apartamento com lista de nomes de mulheres”. No dia 28 de abril, a Polícia Civil concedeu entrevista coletiva e apresentou os livros encontrados no apartamento onde a jovem ficou presa durante três dias. E nenhum deles era de “magia negra”. Entre os livros apresentados pela polícia, havia um dicionário e outro de Harry Potter.

Por se tratar de uma fonte oficial e confiável, a fala da perita criminal foi repassada como verdadeira, o que fez com que tanto o repórter, o apresentador quanto a produção do policialesco Correio Verdade não buscassem outras fontes ou fizessem pesquisas, como orientam os principais manuais de jornalismo, para checar quais livros foram encontrados no local onde a moça ficou e se havia o tal altar dito pela perita no apartamento do suspeito.

Além de violarem os Direitos Humanos, os programas policialescos têm sido um meio de propagação de desinformação e preconceito, principalmente em relação às religiões de matriz africana. Lembrando que a RecordTV é de propriedade do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, que já foi punida judicialmente por veicular em seus programas religiosos conteúdo discriminatório contra os candomblecistas e umbandistas.

Para a jornalista Iara Moura, do Coletivo Intervozes, e a advogada Mayara Silva de Sousa, da ANDI, a participação da sociedade civil e da população em geral é importante no monitoramento e denúncia deste tipo de violação. “A soma desses atores permite a construção de uma mídia democrática e sem violações de maneira mais ampla e aprofundada. Neste sentido, é importante lembrar que foi por meio do sistemático monitoramento da sociedade civil que, em 2019, apresentaram representação contra órgãos do poder público que destinam verbas de publicidade para, e portanto, financiam e legitimam os chamados programas policialescos”, ressaltam.

Arapuan reincidente

Em 2020, o MPF recebeu representação da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa da OAB-PB, contra a TV Arapuan. Mais uma vez a emissora é alvo de denúncia de violação de direitos. Desta vez, os religiosos de matriz africana também foram alvos de ataques preconceituosos por parte do apresentador do policialesco, Rota da Notícia, Vinicius Henriques, e de um representante de uma loja de variedades. No momento do merchandising da loja no programa, o representante comercial entra no estúdio enrolado em um lençol e com um objeto na cabeça, simulando uma dança que faz referência à entidade sagrada da umbanda. Vinicius Henriques então se refere ao representante como “satanás”.

No dia 3 de maio deste ano, no mesmo programa, o apresentador do Rota da Notícia faz comentários após uma rebelião ocorrida no Centro Sócio-Educativo Edson Mota, em João Pessoa – que vitimou fatalmente um adolescente de 18 anos – referindo-se aos adolescentes que cumprem medida socioeducativas como “criancinhas” e “galalaus que são tratados como crianças”. Em um determinado momento da reportagem, o apresentador aponta para a tropa de choque da polícia, sem questionar o porquê do uso por parte do estado deste grupamento policial para conter os jovens. O apresentador, por várias vezes, debocha dos adolescentes e viola artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), afirmando que a lei é a responsável pela rebelião: “Quando houve essa transição do código do menor para o Estatuto da Criança e Adolescente, virou isso aí que você tá vendo.” E acusa a existência de “motel” nas dependências do Centro Sócio-Educativo.

O repórter Gustavo Chaves também zomba da Lei 8.069/90, que garante os direitos de crianças e adolescentes, afirmando que a “conta pela rebelião será paga pelo contribuinte”, provocando ódio na população em relação aos jovens. Gustavo Chaves não respeita a família do jovem que foi morto dentro do Centro, identificando-o, e não cumpre a sua função como repórter de investigar o porquê dos adolescentes se rebelaram e como um deles foi assassinado em um local que deveria preservar sua vida e promover a sua reeducação, conforme estabelece o ECA.

Vinicius Henriques, que tem curso de Direito, neste caso, além de violar o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90), também infringe o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão e legislações multilaterais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humano e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Ele mostra desconhecer totalmente os artigos da Lei 8.069/90 e as mudanças positivas que ela proporcionou na vida de crianças e adolescentes brasileiros, não só dos que estão em conflito com a lei.

Os programas policialescos promovem o ódio, a incitação à violência, a desinformação, o desrespeito à legislação e às decisões judiciais, e como já bem demonstrado pela ampla pesquisa realizada em 2015 pela ANDI, Intervozes, Artigo 19 e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do MPF, violam os direitos humanos e a própria democracia, precisando ser devidamente responsabilizados pelo conteúdo que divulgam. E, principalmente, repensar a veiculação desses produtos que prestam um desserviço à sociedade.

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