Intervozes

Modos feministas de usar a internet

Como as mulheres organizadas enfrentam o machismo também no mundo on-line

Foto: Marcelo Camargo, da Agência Brasil.
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O cenário é desolador. Segundo a ONU Mulheres, apenas 22% de quem trabalha com inteligência artificial no mundo são mulheres, e uma análise de 133 sistemas de inteligência artificial concluiu que 44,2% deles têm viés de gênero. Enquanto isso, as mulheres jornalistas são as mais agredidas: 73% delas, em 125 países, sofreram violência on-line enquanto realizavam seu trabalho. Mas as mulheres estão firmes em diferentes frentes de luta. A diminuição da desigualdade de gênero na internet vem sendo combatida através de denúncias a organismos internacionais de direitos humanos e de incidência na regulação das plataformas e nas políticas públicas. Como em quase tudo que nos diz respeito, porém, não podemos esperar que os espaços dominados pelo patriarcado resolvam nossos problemas. 

Reunir mulheres da vizinhança, aproveitar retalhos e criar artesanato, principalmente em formato de flor. O fuxico, feito em especial no Nordeste, mostra na prática como se pode inventar novos artefatos a partir da tessitura coletiva feminina. Esses são os princípios do projeto com o mesmo nome da organização MariaLab. “A Fuxico é um software livre baseado em um software já existente chamado Pirate Box, muito utilizado por grupos que trabalham com tecnologias livres em lugares onde não há internet”, explica Carla Jancz em entrevista para a Rede Latino-americana de Estudos sobre Vigilância e Tecnologia (Lavits). 

Trata-se, assim, de uma rede comunitária sem fio e segura, operando fora da internet. Ela já vem com uma Sementeira, que são conteúdos pré-selecionados de segurança digital, feminismo, autonomia e colaboração. A proposta é também não capitalista, sendo permitido o uso apenas para “cooperativas, organizações e coletivos sem fins lucrativos, organizações de trabalhadores autogestionados e onde não existam relações de exploração”, de acordo com o próprio site do projeto.

As mulheres também são centrais no interior do Nordeste, pelo seu protagonismo histórico na resistência ao modelo de desenvolvimento vigente, que desrespeita conhecimentos ancestrais. O projeto Territórios Livres, Tecnologias Livres (TLTL) mapeou o acesso à internet em 16 territórios rurais e 17 comunidades quilombolas nordestinas a partir de entrevistas com 274 famílias. Também foram realizadas formações e produção de conteúdo a partir de uma visão feminista, antirracista e comprometida com a justiça socioambiental.

“Aprendemos com as mulheres trabalhadoras rurais e quilombolas que o encontro entre as tecnologias digitais e as tecnologias ancestrais já desenvolvidas pelos povos destes lugares é capaz de construir outras formas de relação das mulheres com seus territórios e seus corpos. É uma relação que colabora na luta contra a violência, não só de gênero, mas também a do racismo ambiental, dos megaprojetos de desenvolvimento, que vêm na mesma toada de alguns projetos de digitalização. Há muitos princípios parecidos na luta contra a violência contra as mulheres, contra o patriarcado e por uma internet livre. Um deles é a autonomia, que nós feministas defendemos para nossas vidas e corpos e que também é necessário nas definições de políticas feitas em territórios de povos tradicionais e comunidades rurais”, explica Iara Moura, do Intervozes, que integra a coordenação ampliada do projeto. O TLTL também é uma iniciativa da Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR/NE). 

Nas brechas do sistema, vulneráveis a ataques: a importância de infraestruturas feministas

Os direitos sexuais e direitos reprodutivos, centrais para a autonomia das mulheres, pressupõem o acesso à informação em suas próprias definições feitas no capítulo VII da Plataforma de Ação do Cairo, resultado da Conferência Internacional da ONU sobre População e Desenvolvimento, que aconteceu em 1994. Na prática, porém, mesmo informações sobre aborto legal sofrem perseguições. Em 2019, o portal feminista AzMina foi atacado por grupos de extrema-direita, inclusive por Damares Alves, então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo de Bolsonaro. O motivo? A publicação de informações sobre aborto legal, cuja fonte era a Organização Mundial de Saúde (OMS). A ministra chegou a acionar a Justiça contra o veículo. O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em uma audiência em março de 2020, no Haiti, pela jornalista Helena Bertho.

No mesmo ano, o Open Observatory of Network Interference (OONI) e a organização Coding Rights denunciaram que o site Women on Waves, que reúne informações sobre aborto seguro, havia sido bloqueado por provedores de internet no Brasil. Questionadas, as empresas NET, Claro e Vivo se limitaram a responder que não comentariam decisões judiciais, sem especificar que decisão judicial havia sido usada para justificar a censura ao site.

Assim como afirmou Iara Moura, representantes da Kéfir, cooperativa feminista de tecnologia livre, em entrevista para a GenderIT.org – Feminist Reflection on Internet Policies, defendem a centralidade da autonomia. Segundo elas, uma infraestrutura feminista da internet é necessariamente também uma infraestrutura autônoma. Isso fica evidente quando acontecem os ataques de negação de serviço: “Distributed Denial of Service” (DDoS). Esta é uma técnica na qual muitos computadores são usados ​​para inundar um serviço on-line com solicitações para sobrecarregar seus sistemas e, assim, impedir o acesso.

“Os ataques DDoS são ataques cibernéticos comuns, que evidenciam a natureza ainda muito invisibilizada da internet como um campo constantemente sob ataque. Achamos que deveriam ser enquadrados como uma questão de ‘economia da internet’, como alguns dizem, e o que está por trás dela: bots, spam, ataques cibernéticos… No contexto da América Latina, e infelizmente em muitas outras regiões, também existem ataques específicos. Mas, de forma geral, todos os sites e contas estão sob ameaça de violação todos os dias. Metade do tráfego da internet são bots. Temos esse contexto, que é meio assustador e nos deixa tensas. Mas é por isso que a resistência é tão importante e temos que fazer isso juntas”, afirmam as mulheres da cooperativa Kéfir, que desde 2017 atua na América Latina. 

A internet que queremos

Frente a esse cenário, as mulheres se mobilizam para uma internet que corresponda ao mundo que queremos, com autonomia, liberdade e respeito. A Associação para o Progresso das Comunicações (Association for Progressive Communications – APC) organizou os Princípios Feministas na Internet. Eles tratam do seguintes temas: acesso, informação, uso, construção de movimentos políticos, governança, economia, código aberto, amplificação, expressão, pornografia, consentimento, privacidade e dados, memória, anonimato, crianças e violência.

O primeiro tema abordado, o acesso, é basilar, pois sem ele não se consegue sequer disputar uma internet feminista. De acordo com o International Telecommunication Union (ITU), organismo da ONU, dos cerca de 2,7 bilhões de pessoas atualmente desconectadas, a maioria são mulheres e meninas. Eleita em setembro de 2021 para o Comitê de Defesa dos Usuários e Usuárias de Serviços de Telecomunicações (CDUST), Naiara Santana, do MMTR/NE, passa por dificuldades de conectividade. “No nosso assentamento só pega uma operadora. Na minha casa fizemos duas tentativas de colocar internet, somos quatro pessoas e, quando todos acessam, não pega nem WhatsApp. O preço é muito alto para um serviço sem qualidade”, contou, em matéria escrita por Tâmara Terso para o NIC.br. Naiara, moradora do Assentamento Vitória da União, em Sergipe, considera que estar no CDUST é uma forma de ampliar a denúncia sobre as desigualdades de conexão.

Globalmente, em 2022, 62% dos homens estavam usando a internet, em comparação com 57% das mulheres, e a diferença se agrava em países em desenvolvimento. Em 2020, apenas 19% das mulheres destes países, entre os quais o Brasil se inclui, acessaram a internet, enquanto o número foi de 86% nos países desenvolvidos, em 2019. Em relação ao primeiro número, vale lembrar que se vivia o primeiro ano da pandemia da Covid-19, quando o acesso a diversos direitos e políticas públicas, inclusive para mitigar os danos da crise sanitária, era feito pela internet. Importante destacar que, no Informe de 2011, o relator especial da ONU sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão, Frank La Rue, considerou que a internet deveria ser considerada um direito humano. 

Um grupo de trabalho formado por organizações, ativistas e pesquisadoras do Sul Global, incluindo o Intervozes, articuladas pela DAWN e IT for Change, também propôs alternativas para uma internet feminista. O documento “Declaration on Feminist Digital Justice”, apresentado na 67ª Sessão da Comissão da Condição Jurídica e Social da Mulher da ONU, traz uma série de princípios para endereçar as questões relacionadas à exclusão interseccional das mulheres, a exploração das plataformas, o bem-estar e a economia digital. Considerar que todas as tecnologias da comunicação devem ser construídas com base no caráter público e desenvolver uma infraestrutura de rede democrática e controlada pelas comunidades, com investimento público, são algumas das propostas elaboradas pelo grupo. 

As mulheres dos países em desenvolvimento – e, dentro deles, agrava-se a situação em comunidades rurais e quilombolas, como mostrou o mapeamento do projeto TLTL – são muitas vezes instrumentalizadas como um público-alvo vulnerável. As considerações para estabelecer princípios feministas para a Internet também ressaltam que as mulheres devem ser consideradas parte interessada e fundamental para a decisão sobre o tipo de acesso à Internet que garante direitos, em vez de restringi-los. 

Se a internet que queremos é acessível, igualitária e universal, não é possível alcançá-la sem garantir a participação ativa das mulheres, em toda a sua diversidade.

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