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Marcha das Margaridas: por que a mídia silencia as mulheres do campo, da floresta e das águas? 

A sétima edição da maior mobilização coletiva de mulheres da América Latina não sensibilizou a mídia brasileira

7ª Marcha das Margaridas. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
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por Iara Moura e Patrícia Paixão de O. Leite 

Foi um alento abrir a página A3, da seção Opinião, na coluna Tendências/Debates, da Folha de S.Paulo, no dia 15 de agosto, e ler o título “A luta das Margaridas”, com o subtítulo “Marcha de mulheres em Brasília defende ampla transformação social no país”. Tratava-se de um artigo assinado pela agricultora familiar Mazé Morais, que é secretária de Mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) e coordenadora Nacional da Marcha das Margaridas, em parceria com Marco Antonio Teixeira, Eryka Galindo e Renata Motta os três são integrantes do Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça. 

O texto reflete sobre a importância, origem e finalidade da Marcha, bem como as principais pautas das mulheres. Não é comum ler nas páginas de jornais ou assistir em telejornais análises honestas e que valorizem movimentos sociais, sobretudo de mulheres, e ainda mais, de mulheres trabalhadoras do campo, da floresta e das águas, que são historicamente silenciadas em suas pautas e demandas. Mas era um artigo assinado; opinativo, portanto. E na parte de cima da coluna a Folha deixava bem transparente: “Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.”.

Por isso o alento durou pouco: a mídia comercial, de maneira geral, realizou uma cobertura medíocre sobre a Marcha das Margaridas um movimento que é considerado a maior manifestação coletiva de mulheres da América Latina, reunindo na edição deste ano 100 mil militantes em Brasília. E foi justamente com o intuito de monitorar o comportamento dos meios de comunicação em relação a esse fundamental evento que o Intervozes e a Angola Comunicação reuniram esforços e afetos para analisar as coberturas da mobilização nas edições impressas dos jornais Folha de S. Paulo, Estadão e O Globo e dos telejornais Jornal Nacional (JN), SBT Brasil e Jornal da Record. Também analisamos a cobertura da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). O período de pesquisa foi entre 15 e 17 de agosto deste ano já que a marcha aconteceu no dia 16 , com publicação dos resultados em dois artigos. Neste primeiro texto, vamos discorrer sobre a cobertura da Folha, Jornal Nacional, Jornal da Record e SBT Brasil. 

No dia 15 de agosto, aparece o tema na Folha de S. Paulo apenas no já citado artigo de Mazé Morais. No dia 16, o assunto não foi encontrado em qualquer método de busca no jornal. No dia 17, aparecem duas menções: uma na seção Política (página A6) e outra na seção Folha Corrida (página B8). Ambas são fotos-legenda e não matérias. Na primeira, a imagem, em foto horizontal, do presidente Lula discursando, junto de sua companheira, Janja, no palco montado na Esplanada dos Ministérios, ao final da Marcha das Margaridas. Na legenda: “Lula anuncia retomada de programa de Reforma Agrária durante Marcha das Margaridas. Durante a manifestação de trabalhadoras rurais, Lula (PT) afirmou que a iniciativa dará ‘atenção especial a famílias comandadas por mulheres’ para assentamentos”. 

Na outra seção, também uma foto-legenda. Desta vez, na vertical, com uma imagem de cima da manifestação, com visão das mulheres e seus chapéus de fitas lilases. No texto abaixo da foto: “Marcha das Margaridas reúne milhares de manifestantes na Esplanada dos Ministérios. Ato da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, em Brasília, marca a luta das camponesas pelo direito das mulheres, combate à violência de gênero e pela diminuição da desigualdade social em comunidades de campo”. A cobertura do jornal, portanto, se limitou a publicar duas fotos-legenda, num silenciamento de vozes e corpos das mulheres que viajaram milhares de quilômetros, dos diversos cantos do país, para lutar por direitos, políticas públicas e mais respeito. E com uma pauta central para o país.

O Jornal Nacional, líder de audiência, não cobriu o assunto nos dias 15 e 17. No dia 16, o tema não entrou nas escaladas de abertura. Em um dos blocos, no meio de outros temas, a âncora Renata Vasconcellos parecia que ia chamar uma reportagem: “Agricultoras de todo país participaram hoje da Marcha das Margaridas, em Brasília. O ato é feito de quatro em quatro anos para divulgar a pauta política das mulheres do campo. O evento ocupou parte da Esplanada dos Ministérios. O presidente Lula disse que as famílias chefiadas por mulheres  terão atenção especial na retomada da Reforma Agrária.”. Foram 21 segundos, ao todo. Não houve reportagem. Enquanto a apresentadora narrava, passavam imagens das mulheres durante a manifestação e do presidente Lula junto com representantes de ministérios e secretarias no palco.  

O SBT Brasil não abordou o tema das Margaridas nos dias 15 e 17 de agosto. Já no dia 16, o telejornal trouxe o assunto em reportagem de 3 minutos e 5 segundos, sob a manchete: “O presidente Lula participou hoje da sétima edição da Marcha das Margaridas, que reuniu, em Brasília, mulheres do campo e da cidade. Lula anunciou a retomada de programas da Reforma Agrária, com preferência de famílias chefiadas por mulheres”. Em nota coberta, o texto indicava que “A marcha não acontecia desde 2019 e tomou a Esplanada dos Ministérios com palavras de ordem”, com imagens de manifestantes empunhando faixas e do presidente Lula discursando. O destaque é para a fala de Lula, com trecho do discurso em que critica o governo anterior pelo tratamento dado aos movimentos sociais.

A matéria diz, ainda, que Lula assinou o Plano Emergencial de Reforma Agrária, o Bolsa Verde e o Pacto Nacional de Prevenção de Feminicídios. A reportagem inclui pesquisa sobre aprovação do presidente Lula e cita pressão do congresso, centrão, por cargos. Não menciona as reivindicações da marcha, não escuta nenhuma militante ou organizadora do movimento, não cita o número de mulheres presentes. Termina com conteúdo sobre as negociações de Lula no Congresso Nacional. A única fonte é Lula. Mais uma vez, como é comum na mídia, o dispositivo de sempre ouvir narrativas oficiais permanece. As mulheres, como sempre, silenciadas. 

O Jornal da Record também não fez menção à Marcha das Margaridas nos dias 15 e 17 de agosto. No dia 16, o telejornal trouxe uma reportagem sobre a mobilização, sob a chamada: “O presidente Lula anunciou hoje um pacto de combate ao feminicídio. O decreto foi assinado durante a Marcha das Margaridas, em Brasília”. A matéria narra que a sétima edição da marcha aconteceu no dia em que foi registrado o vigésimo quarto caso de feminicídio deste ano no distrito federal. “Milhares de mulheres ocuparam a Esplanada dos Ministérios e caminharam em direção ao Congresso Nacional. O trânsito foi parcialmente bloqueado para organizar a marcha. As manifestantes vieram ao Distrito Federal reivindicar políticas sociais voltadas ao fortalecimento da agricultura familiar e ao combate a violência contra a mulher”, diz a nota coberta.

A reportagem informa que o presidente aproveitou para anunciar oito decretos, incluindo Bolsa Verde e Pacto de Prevenção ao Feminicídio. A reportagem repercute trecho do discurso de Lula (o mesmo que ganhou repercussão no SBT Brasil) com cerca de 20 segundos.  A fala da ministra das mulheres, Aparecida Gonçalves, por sua vez,  dura menos de 10 segundos. A matéria completa dura menos de dois minutos.

O que a mídia ignorou

Se a “desculpa” da mídia privado-comercial para não divulgar a 7ª Marcha das Margaridas fosse falta de “gancho jornalístico”, poderíamos facilmente desmenti-la. A mobilização ocorreu nos anos 2000, 2003, 2007, 2011, 2015 e 2019. A versão deste ano era muito esperada, pelas perdas materiais e simbólicas sofridas pelas mulheres nos anos do (des)governo Bolsonaro. E a edição deste ano é ainda mais importante porque neste agosto completaram-se quarenta anos do assassinato da trabalhadora rural e líder sindical paraibana, Margarida Alves, executada por mandantes latifundiários, e que sentenciou em vida: “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”. Pela história de vida e luta dessa militante que a mobilização ganhou o seu nome.

Com o lema “Pela reconstrução do Brasil e pelo bem viver”, esta sétima marcha das Margaridas trouxe eixos políticos que dialogam com diversos campos de luta, inclusive, que são também pautas de reivindicações junto às instâncias de poder. São eles: democracia participativa e soberania popular; poder e participação política das mulheres; autodeterminação dos povos, com soberania alimentar, hídrica e energética; democratização do acesso à terra e garantia dos direitos territoriais e dos maretórios; vida saudável com agroecologia e segurança alimentar e nutricional; direito de acesso e uso da biodiversidade, defesa dos bens comuns e proteção da natureza com justiça ambiental e climática; autonomia econômica, inclusão produtiva, trabalho e renda; educação pública não sexista e antirracista e direito à educação do e no campo; saúde, previdência e assistência social pública, universal e solidária; vida livre de todas as formas de violência, sem racismo e sem sexismo; e autonomia e liberdade das mulheres sobre o seu corpo e a sua sexualidade.

Margaridas querem acesso à internet 

A universalização do acesso à internet também foi uma agenda na pauta de lutas. Neste eixo, a participação de mulheres do campo, da floresta e das águas na definição de políticas públicas de acesso e de governança do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações além do apoio à instalação de redes comunitárias foram pontos trazidos pelas margaridas.

Realizada pela Conaq, MMTR-NE e Intervozes, a pesquisa Territórios Livres, Tecnologias Livres ouviu 274 famílias de 33 comunidades dos nove estados do Nordeste entre os meses de abril a junho de 2021.  Um dos resultados do levantamento– que buscou identificar usos e acessos de internet e tecnologias de informação e comunicação em áreas rurais e quilombolas do país – é que 29% dos domicílios nestes territórios não têm acesso à internet.

Dentre as famílias que possuem internet em casa, 33% têm dificuldade para pagar os custos mensais com o serviço. Quando chove, a internet fica ruim ou falha, “com muita frequência”, para 41% das famílias. Apenas 11% das famílias que vivem nessas comunidades têm computador, as demais utilizam celulares com planos de dados limitados para ter acesso a informações sobre a pandemia de covid-19, estudar, trabalhar, acessar conteúdos religiosos e culturais e se conectar com a comunidade.

O estudo evidenciou também que a desigualdade no acesso à rede tem consequências diretas na vida das mulheres quilombolas e trabalhadoras rurais. Um exemplo neste sentido é que muitas tiveram que contar com a ajuda de vizinhos ou mesmo se deslocar da comunidade para ter acesso ao auxílio emergencial.

Por si só as reivindicações trazidas como eixos da mobilização já seriam pauta suficiente para uma cobertura robusta da mídia. Não bastasse isso, a mobilização foi um sucesso, tendo momentos de formação, denúncia, proposição e negociação política com o Estado. As ruas de Brasília ficaram repletas de “margaridas” de chapéus de palha levando as suas lutas nos cantos e palavras de ordem até a Esplanada dos Ministérios. E foi justamente ali o único ponto que gerou alguma repercussão da imprensa, sem, no entanto, o necessário aprofundamento e sem relacionar os anúncios do Governo Federal como resultado da mobilização popular das “margaridas”. O presidente Lula, reconhecendo a força da manifestação das mulheres do campo, anunciou, no palco montado ao final da marcha, o Plano Emergencial de Reforma Agrária, que vai atender 45 famílias, mas priorizando as mulheres, o programa Bolsa Verde de R$ 600,00 e o Pacto Nacional de Prevenção ao Feminicídio. 

A importância da Marcha das Margaridas também resultou na sanção, no dia 23 de agosto, da alteração da Lei 11.947, que passou a incluir grupos formais e informais de mulheres da agricultura familiar como prioridade na aquisição de alimentos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Esse desdobramento está na pauta de reivindicação das mulheres, uma vez que estabelece paridade na venda das famílias produtoras, ou seja, 50% das vendas da família para o PNAE deve ser feita no nome da mulher. 

Mas sabemos que não falta justificativa para a mídia pautar a Marcha das Margaridas. Há, na verdade, descaso e silenciamento proposital com a luta das mulheres, do campo e da cidade, dos trabalhadores e trabalhadoras, dos indígenas, enfim, dos grupos vulnerabilizados da sociedade. Certamente, se houvesse um pequeno movimento de empresários em Brasília, com a presença de um presidente da República, a mídia gastaria muitos minutos audiovisuais ou centímetros de jornais com esses temas. 

Os meios de comunicação tradicionais no Brasil têm pacto com o capital, assim sendo, cortejam (e fazem parte de) elites econômicas, religiosas e políticas, de preferência, conservadoras. Integram, assim, parte de uma monocultura tríplice: mídia, tecnologias e agricultura conforme cunharam Olívia Bandeira e Camila Nóbrega, no livro “Quem controla a mídia”, publicado pelo Intervozes em 2022.

Como parte das atividades da Marcha, foi organizado o Tribunal das Mulheres em Resistência. Frente aos relatos das mulheres, em geral de acusação de omissão e inércia do Estado na resolução de problemas socioambientais e econômicos, e por muitas vezes de violação de direitos humanos fundamentais, o veredito final foi “O Estado brasileiro é culpado!”. Ousamos demarcar: pelo silenciamento, pela invisibilização, por sustentar e ser parte dos monopólios, a mídia brasileira também é culpada!

Se as mulheres trabalhadoras não fossem sempre silenciadas ou subalternizadas pela mídia, o Intervozes e a Angola Comunicação não precisariam ter  se debruçado sobre a cobertura dos meios de comunicação durante a 7ª Marcha das Margaridas. Vamos pegar emprestado, para nossa motivação, o poema que Grada Kilomba usou para abrir a Introdução de “Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano” (2019): “Por que escrevo? / Porque eu tenho de / Porque minha voz, / em todos seus dialetos, / tem sido calada por muito tempo” (Jacob Sam-La Rose).

Iara Moura é jornalista, mestra em comunicação e coordenadora do Intervozes

Patrícia Paixão de O. Leite é jornalista, doutora em Comunicação e integrante do Intervozes. Pesquisa mídia, discurso e decolonialidade.

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