Intervozes

Imprensa não condena aborto, mas blinda governo

Nesta semana do 8 de março, o Intervozes reflete sobre a cobertura da imprensa para os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres

Foto: Mídia Ninja
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Apesar de respeitar o aborto legal no Brasil, em geral, a imprensa não relaciona o tema à cultura do estupro nem à educação sexual, não aprofunda as respectivas questões interseccionais e costuma blindar os ministérios da Saúde e da Mulher, Família e Direitos Humanos – como no caso que chocou o país da menina de dez anos, vítima de estupro, que enfrentou dificuldades para realizar o aborto legal.

Na maioria dos casos, o posicionamento dos veículos é de mera defesa da legalidade, sem debater o aborto como parte dos direitos sexuais e reprodutivos, fundamental para a autonomia das mulheres.

A conclusão faz parte dos resultados preliminares da pesquisa que vai compor o relatório Vozes Silenciadas – Direitos Sexuais e Reprodutivos, produzido pelo Intervozes. Analisamos a cobertura de alguns dos principais meios de comunicação no Brasil, nos anos de 2018 (entre 1º e 10 de agosto, período em que aconteceram audiências públicas no Supremo Tribunal Federal sobre aborto) e 2020 (nos meses de agosto e setembro, quando veio à tona o caso da criança de dez anos e foram publicadas novas regras para o aborto pelo Ministério da Saúde). Foram estudados os jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo e O Globo; os telejornais Jornal Nacional, Jornal da Record e SBT Brasil e a Agência Brasil.

As audiências públicas promovidas pelo STF se originaram de uma ação, ajuizada pela ANIS – Instituto de Bioética e PSOL, que pedia a revisão dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam o aborto. No total, a Folha de S.Paulo publicou 15 artigos relacionados às audiências sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Constitucional (ADPF) n° 442, realizadas pelo STF nos dias 3 e 6 de agosto de 2018 – todos favoráveis à descriminalização do aborto. O jornal publicou apenas uma reportagem, cobrindo o segundo dia de audiências, escrita por um jornalista homem. O texto trouxe posicionamentos pró e contra a descriminalização.

O Jornal Nacional cobriu os dois dias de audiências no STF sobre a ADPF n° 442. A reportagem foi realizada por um jornalista homem e limitou-se a mostrar os argumentos dos setores da sociedade pró e contra a descriminalização, bem como lembrou os casos em que a lei brasileira permite o aborto. Assim como a Folha de S. Paulo, o Jornal Nacional também não ouviu representantes do movimento feminista nem trouxe dados sobre o contexto do abortamento no Brasil, como número de mortes de mulheres em decorrência de procedimentos clandestinos.

Já o Jornal da Record, principal telejornal da emissora paulista, optou por quase se abster do assunto, não fosse por uma única nota coberta que durou menos de meio minuto. A nota, que citou o início das discussões da pauta no STF, enfatizou os casos em que o aborto é permitido no Brasil.

Por sua vez, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que desde meados de 2016 tem sofrido forte interferência do governo em sua linha editorial, ouviu vários campos envolvidos na pauta. Um destaque louvável foi a apresentação de dados levantados pela campanha Nem Presa, Nem Morta, que demonstrou que 42% dos argumentos em defesa da liberação do aborto nas audiências do STF eram articulados a partir de dados científicos e que, do lado contrário, mais da metade dos participantes (55%) realizaram apresentações baseadas em princípios religiosos. Outro destaque nas matérias da EBC foi colocar a questão da saúde pública como central para o debate. Neste sentido, também a cobertura do SBT manteve a pluralidade de ideias e ouviu importantes entidades que lutam pela legalização do aborto a partir de uma visão relacionada à saúde pública e social.

Já o jornal O Globo publicou 12 matérias sobre a ADPF, cobrindo as audiências e publicando entrevistas com representantes dos argumentos pró e contra a descriminalização. No dia 3 de agosto de 2018, O Globo publicou seu posicionamento: “Não se pode perder a perspectiva de que, num Estado laico, o aborto é, acima de tudo, questão de saúde pública”, afirmava o texto. O editorial também levou em consideração como o aborto atinge as mulheres de formas diferentes, a depender da raça e da classe social, e citou dados científicos, o que saudamos como uma qualificação dos textos jornalísticos.

No Estado de S. Paulo, entre 1º e 10 de agosto, foram publicados 12 textos sobre as audiências do STF sobre a ADPF n° 442, quase o mesmo número de textos sobre a votação pela legalização no Senado argentino, mostrando que o jornal não priorizou os debates no Brasil.

Em 2020, o tema do aborto voltou à mídia com o caso da gravidez de uma menina negra de 10 anos, no Espírito Santo. O Jornal Nacional noticiou o fato no dia 15 de agosto, classificando-o como “bárbaro”. Entre as imagens usadas, a reportagem optou por exibir a de uma mulher de cor negra, com gravidez avançada. Sabemos, porém, que o aborto não é realizado nesta etapa da gestação, e sim quando ainda é um feto ou embrião. Imagens como essa só ajudam a criminalizar as mulheres.

Na segunda-feira 17, o JN retomou o caso, informando que a menina conseguiu realizar o aborto legal em um hospital de Recife. A reportagem durou 4 minutos e, desta vez, foi feita por uma repórter. A linha seguida pela reportagem foi a do aborto legal. Também foram exibidas imagens da manifestação de políticos da extrema-direita e de fundamentalistas religiosos que se dirigiram até a frente do hospital para impedir que o direito da menina fosse respeitado, e de ativistas feministas que foram ao local prestar apoio à equipe médica e à criança. O vazamento de informações sobre a menina nas redes sociais pela extremista Sara Giromini foi informado. Por fim, a matéria trouxe uma entrevista com o médico Olimpio Moraes Filho, diretor do hospital em Recife.

A reportagem não questionou o papel da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, nem do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para saber se o governo federal estava prestando assistência à menina e sua família. Já a Folha de S. Paulo trouxe, em um boxe, fala de Damares e do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, no dia 18 de agosto. Ele se disse favorável ao aborto, de acordo com o Código Penal, e a ministra informou que havia enviado uma equipe para prestar assistência à criança.

No caso da menina, o Jornal da Record realizou cobertura entre os dias 17 e 20 de agosto de 2020. No primeiro dia, o médico Olímpio Moraes Filho, que realizou a intervenção cirúrgica, falou sobre o sofrimento vivenciado por ela. A fala foi seguida pela do advogado José Luiz Galvão, da OAB-PE, que explicou porque o aborto realizado era legal. A emissora continuou então a cobertura ligando o aborto a uma necessidade, tendo em vista o abuso sexual sofrido. Em outra matéria, foi citado o número de crianças de até 13 anos vítimas de abuso no país e o número de abortos realizados por dia em crianças vítimas de estupro.

Ao todo, o caso mereceu cinco menções, por cinco dias seguidos no Jornal da Record. Por meio de notas cobertas e entradas ao vivo, foram noticiadas a prisão do tio da criança, autor dos abusos, e o pedido de prisão da extremista Sara Giromini, por ter vazado informações sobre a menina. Mas o telejornal não relacionou a extremista à ministra Damares, mesmo tendo Sara trabalhado no ministério na gestão de Damares.

O jornal O Globo, por seu turno, realizou cobertura sobre o caso entre os dias 15 e 20 de agosto de 2020. Foram 17 menções, entre notícias, reportagens e artigos opinativos, além de um editorial. Em sua maioria, as matérias publicadas foram favoráveis ao procedimento. Somente em notícias pontuais, como a prisão do tio acusado do estupro, as matérias foram consideradas neutras. No editorial, de 18 de agosto, o jornal lembrou a via crucis percorrida pela criança para conseguir realizar o aborto, previsto em lei, e salientou que a recusa do hospital do Espírito Santo em atender a criança não se sustentava legalmente, pois o Código Penal não faz ressalvas sobre a idade gestacional para abortos em vítimas de estupro.

Na maioria das matérias publicadas pelo jornal, nota-se uma preocupação em apresentar o aborto nas condições atualmente previstas em lei, como no caso da criança. O jornal não aprofundou a relação entre o aborto e a cultura do estupro e pouco mencionou a questão da interseccionalidade, que veio à tona somente no texto opinativo “E Se Fosse Sua Filha?”, publicado em 18 de agosto e assinado por Luciana Boiteux, advogada autora da ADPF, e a deputada estadual Mônica Francisco (PSOL-RJ).

Por outro lado, O Estado de S. Paulo publicou 12 textos sobre o caso no Espírito Santo, mas sem se aprofundar sobre a violência sexual sofrida por crianças e adolescentes. Mais de 90% das matérias sequer menciona a educação, mesmo que de forma superficial, como uma forma de prevenção a esse tipo de violência. Já a Folha de S. Paulo publicou 11 reportagens sobre a violência sexual sofrida pela menina entre os dias 18 e 20 de agosto, realizou também reportagens sobre outros casos de abuso sexual contra crianças, mas não pontuou a cultura do estupro, a falta de educação sexual nas escolas e a interseccionalidade entre raça e classe.

A colunista Camila Mattoso mostrou a falta de assistência do Ministério da Saúde à menina e sua família para a realização do procedimento legal e o corte de verbas, promovido na gestão Damares. O Programa de Proteção à Criança Ameaçada de Morte, por exemplo, teve orçamento reduzido de 1 milhão de reais para 736 mil em 2020. Camila lembrou que este programa poderia ter oferecido proteção à menina capixaba. No dia 18, a Folha afirmou sua defesa pelo direito das mulheres decidirem de acordo com suas próprias convicções no editorial “Direito ao aborto”.

No caso da criança vítima de estupro no Espírito Santo, a EBC só passou a publicar matérias a partir da decisão do Ministério Público/ES de pedir investigação sobre o vazamento de dados da menina. Todas as matérias da Agência Brasil apenas noticiaram os acontecimentos e divulgaram os posicionamentos oficiais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Já o SBT usou o caso para falar sobre a dificuldade do aborto legal no Brasil e como casos como o da menina de dez anos são comuns no país, trazendo dados do Sistema Único de Saúde (SUS) que mostram que, no Brasil, são registrados pelo menos seis abortos por dia entre meninas de dez a 14 anos, todos resultado de estupros.

A ministra Damares Alves é uma das fundadoras da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) e passou mais de 20 anos assessorando parlamentares cristãos em pautas como a da condenação do aborto. A extremista Sara Giromini, que vazou os dados da criança de dez anos, levando uma multidão para a frente do hospital e obrigando a menina a deixar o local no porta-malas de um carro, foi assessora e afilhada política de Damares. Em 2020, o Ministério da Saúde publicou portaria em que obrigava os profissionais de saúde a acionarem a polícia em caso de atendimento a mulheres vítimas de estupro que buscassem o aborto legal, além de sugerir aos profissionais que apresentassem ultrassonografia do feto ou embrião a estas mulheres.

Os jornais televisivos e impressos analisados não fizeram relação entre essa afronta aos direitos das mulheres e crianças e o caso da menina de dez anos do Espírito Santo. Não apontaram a ligação entre os diversos ataques sofridos pela vítima e os retrocessos para todas as mulheres no atual governo federal. Se não foram contrários ao aborto, com exceção d’O Globo, também não o defenderam como um direito, que, inclusive, é fundamental para que haja efetiva igualdade de gênero entre homens e mulheres. Como diz a cientista política Flávia Biroli, “não se trata de um problema das mulheres, mas de um problema das sociedades democráticas”.

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