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Ideias para um programa preto nas comunicações no Brasil

É preciso falar do Brasil que é preto. Logo, não é possível qualquer programa, de qualquer agenda temática, ter outra coloração

Foto: Janine Moraes/MinC
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Um exercício imaginativo futurístico, um olhar sobre o passado como sankofa, dele apreendendo os tesouros ancestrais para, tal um oráculo, espreitar o futuro. Não um futuro que nos aparta do presente, mas um futuro baobá com a copa espetando o horizonte de novos tempos e as raízes bebendo do solo dos que aqui pisaram antes.

É esta imagem que vem como resposta à provocação: o que seria um programa preto para as comunicações no Brasil?

Para começo de conversa, é preciso falar do Brasil que é preto. Logo, não é possível qualquer programa, de qualquer agenda temática, ter outra coloração. Somos 54% da população brasileira e isso não é apenas um dado quantitativo. Os nossos antepassados, antes de serem sequestrados e sobreviverem à brutalidade do escravagismo colonial, em África, plantaram sementes socioculturais que sustentam hoje o país, superestrutural e infraestruturalmente, se quisermos usar essas expressões. 

Apesar disso, a máquina colonial atualizada no estado neoliberal e na chamada “economia de plataformas” relega a população preta brasileira à sub-representação, à superexploração de dados e de tempo de vida e à superexposição na mídia comercial e também na pública. 

Em todas as facetas são construídos e fortalecidos mercados e vivências violentas, censórias, discriminatórias e branco-supremacistas.

Reivindicamos historicamente a representatividade nos canais de rádio e TV, nos comerciais, nos jornais, nas novelas. Houve movimentos de avanço, mas o pêndulo do racismo institucional não falha na manutenção do pacto da branquitude. Assistimos ora à objetificação e sexualização dos corpos das mulheres e homens negros, ora a espetacularização da dor de mães de vítimas de violência policial ou a “piada” infame para quebrar o climão e manter tudo como está. São poucos ainda os nossos que brilham em sua humanidade reconhecida no mainstreaming. E abriram caminhos dolorosos para uma caravana que ainda está por passar, para desespero dos guardiões da branquitude.

Ainda somos bem poucos nas redações em cargos de chefia. Somos inexistentes nos quadros societários de empresas de mídia. Somos invisíveis nos gabinetes de Estado que tratam da agenda de comunicação – seja no Executivo, Legislativo ou Judiciário. Mesmo na sociedade civil organizada que reivindica o movimento de comunicação, quantos somos e em que posições e condições de incidência política estamos?

Na internet, pensamos haver uma chance de mais abertura para nos expressar. Os monopólios digitais, como não podia deixar de ser, seguem complacentes com o racismo, que ganha contornos de algoritmização, automação e plataformização. O discurso de ódio e a violência política nos atinge fatalmente como a “bala perdida” das ações de genocídio do Estado. E há quem acuse “aleatoriedade do sistema” ou “anomalia no padrão da comunidade”. Desde os escritórios das big techs, se negam a olhar a nossa cara. O reconhecimento facial nos observa apenas como alvos. Somos vistos como um ninguém de consumidores, trabalhadores e produtores de conteúdos. Ora desagradáveis, ora monetizáveis.

Não temos acesso às tecnologias de ponta nem decidimos sobre as infraestruturas que cortam ou desviam a rota dos nossos territórios.  

Não somos chamados a opinar na governança do que quer que seja. Mas metemos nosso bedelho. As mídias pretas, as coletivas de mulheres negras, as juventudes pretas periféricas, os territórios quilombolas, as mídias e laboratórios de favela vão, em outra direção, resistindo, contando outras histórias, desafiando o “cala a boca” dos racistas, alargando as brechas e movendo as estruturas. 

Forjamos nossas próprias tecnologias sociais, ancestrais e comunicacionais, desde os murais, às rádios, à festa entoada por tambor, às batalhas de rap, aos bailes, às rodas de samba, às emboladas, às redes comunitárias, aos canais de web rádio, web tv, aos hackathons de reação ao racismo e de autoproteção aos nossos. Lutamos pela cota no cinema, na tv por assinatura (ou Serviço de Acesso Condicionado), enquanto criamos nossos próprios festivais, inventamos novos modelos de distribuição, e ao mesmo tempo, ocupamos os streamings. Somos nós com as mochilas pesadas com a logo dos aplicativos, os tais “novos” intermediários-patrões. Somos nós também que sabotamos, hackeamos, sampleamos as tecnologias que nos querem amansados e que se alimentam do banzo da vida não comunitária, da vida plataformizada.

A partir disso, como pensar um programa preto para as comunicações num cenário de convergência? A convocatória para este exercício de imaginação radical é coletiva. É uma gira que depende de cada corpo para se manter viva, ao mesmo tempo em que é uma batalha de rap que acontece no ao vivo, sem ensaio. Daí que resolvemos fazer o convite para ativistas/es, pesquisadoras/es negres para se juntar nesta roda e cada um trazer seu bocado. Um programa como uma roda de bamba, vivo, em construção. A seguir, ativistas, pesquisadoras/es, comunicadores/as e produtores/as de conteúdo fazem seus anúncios, dão seus pitacos. 

Uma comunicação com diversidade efetiva

“Quando falamos sobre o Brasil não podemos ignorar que temos uma maioria minorizada, como o professor Richard Santos qualifica a relação com que tratamos a população negra, e uma minoria invisibilizada, que são os povos originários e comunidades tradicionais. Tanto no sistema privado quanto no sistema público de comunicação, esses povos são constantemente alvos de silenciamentos e violação de direitos humanos, evidenciando que a história das comunicações no Brasil expressa a própria história do país. Por isso, o meu sonho para uma outra comunicação – que é necessária – é termos garantidas políticas públicas que tenham a equidade étnico-racial como princípio estruturante e, assim, superem as marcas do colonialismo. Isso passa por efetiva diversidade não apenas na representatividade em tela, mas também na propriedade de mídia, na gestão da comunicação pública, na governança da internet e nas instâncias de fiscalização da radiodifusão”.

Paulo Victor Melo – doutor em Comunicação pela UFBA, professor do IADE/Universidade Europeia, pesquisador do ICNOVA e associado do Intervozes.

Pluralidade, regulação e educação midiática para enfrentar a desinformação

Para o enfrentamento da desinformação climática, em especial no Brasil, é importante algumas batalhas sejam travadas de forma conjunta porque, juntas, compõem essa rede complexa e danosa que impacta diretamente a vida e o futuro da natureza e dos seres que habitam nela. Primeiro e, talvez o mais antigo deles, é a pluralidade de vozes e a representatividade de diferentes povos e grupos nos meios de comunicação, com um olhar criterioso e democrático para os desertos de notícias e financiamento como política de estado para o fortalecimento de mídias locais, assim como o acesso à internet dentro da perspectiva de que acesso à informação é direito de todos. Tão importante quanto, é urgente a regulação das plataformas, para que saibamos como determinados conteúdos são entregues, são moderados e que essas empresas privadas tenham em suas políticas também o enfrentamento à desinformação climática. Hoje nenhuma delas enfrenta isso como política. Por fim, a importância da educação midiática para todas as idades em diferentes regiões do país, para que saibamos identificar uma desinformação e buscar fontes confiáveis.

Viviane Tavares – jornalista e coordenadora executiva do Intervozes

Pretos no topo da governança da internet 

“Essa pergunta é muito boa, porque é um exercício de imaginação, é uma pergunta para refletir. Em primeiro lugar, qualquer ação pensada dentro desse guarda-chuva tem que considerar o contexto brasileiro do racismo estrutural e institucional. Isso significa que se a gente quiser ter algum tipo de equilíbrio, nós precisamos sempre criar ações afirmativas. E como a gente tangibiliza isso? Vamos deixar 54% das vagas nos espaços, pegando os dados do tamanho da população negra no Brasil, para negros e indígenas? Precisamos considerar isso para todas as ações. Por exemplo, no contexto da governança da internet e de um programa para as comunicações, se estamos falando de pesquisadores, de corpo docente para oficinas, para ministrar aulas, a gente tem que partir desse lugar sempre, desse contexto estrutural do Brasil. Se a gente parte desse lugar, tudo vai se desdobrando. A gente tem dados para avançar nisso, o próprio CGI.br procura compreender onde a internet não chega. Sabemos que esses lugares têm cor e classe social. Como a gente faz chegar ou apoia ações alternativas, como as redes mesh, as redes comunitárias? É importante trazer isso com mais efetividade, enquanto política estruturada, e não como algo pontual”. 

Sil Bahia – Codiretora executiva do Olabi

Um país que combate o racismo algorítmico

“Ainda é vigente no Brasil a dupla opacidade que dificulta o combate ao racismo algorítmico: de um lado ainda a negação do racismo em espaços de definições de políticas públicas; e de outro a errada crença sobre neutralidade da tecnologia. Imaginarmos futuros soberanos e inclusivos digitalmente passa então também por dois eixos entrelaçados: políticas afirmativas para inclusão e fomento à infraestrutura digital. É papel do Estado regular e incentivar direta e indiretamente a produção de ecossistemas de mídias digitais que impulsionem nossa riqueza cultural, comunicacional e política. Os últimos 15 anos demonstraram que a submissão a big techs estrangeiras nos prejudica, da concorrência desleal à erosão da esfera pública. Focar recursos de modo programático na inclusão digital, cidadã e crítica, em vários níveis, das atuais bases da pirâmide social, é urgência para a reconstrução do país.

Tarcizio Silva – Pesquisador da UFABC e Fellow Mozilla Foundation

Laboratórios de tecnologia ancestral

“A gente tinha que ter uma rede organizada por um fundo que pudesse criar espaço em cada território de identidades, em cada território de concentração de comunidades, criar laboratórios de intercâmbio e produção de tecnologias ancestrais e digitais. Uma ideia parecida com os makerspaces, que até em São Paulo se chamam de “laboratórios comunitários de fabricação digital”. Mas que fossem para além do digital, que permitisse esse encontro de tecnologias digitais e ancestrais. Que dispusessem de equipamentos de uso público e gratuito, que fossem como se pensou mais atrás. Como Gilberto Gil pensou nos Pontos de Cultura, de formar uma rede desses lab-fab, digamos assim. De fabricação, produção, fomento e intercâmbio de tecnologias digitais e ancestrais entre os territórios. Isso também fomentando esse encontro e fortalecendo do ponto de vista territorial essa autonomia, essa independência de construção de tecnologias para os seus territórios. A gente dependeria menos de grandes laboratórios de tecnologia internacional e também dessa produção midiacentrada. A outra coisa que tô pirando já faz um tempo é a gente ter um centro de referência, um museu, da mídia negra. Da comunicação amefricana. Um centro de memória onde a gente pudesse catalogar, preservar, salvaguardar essa memória dos que vieram antes. Cada dia mais a gente conhece sobre essa história, mas ela ainda está muito dispersa. Isso fortaleceria a gente pensar outros sistemas de comunicação como sistemas válidos, legítimos para, a partir deles, pensar políticas de comunicação”.

Tâmara Terso – Doutoranda em Comunicação pela UFBA, pesquisadora do CCDC/UFBA e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Acesso à internet é direito

O governo, seja no âmbito municipal, estadual ou federal, tem feito seus atendimentos através da internet, num processo que chamamos de “plataformização das políticas públicas”. Esse é um contrassenso enorme, porque nós não garantimos o acesso à internet livre, de banda larga, para boa parte da população. E nós sabemos que são as pessoas pretas e pobres que estão alijadas do acesso a esses serviços. Isso é cruel. Por um lado, precisamos garantir o acesso à internet para toda a população. Por outro, também é necessário garantir serviços públicos acessíveis, ou seja, se a pessoa não tiver acesso, que o órgão público dê acesso à internet para garantir os direitos da população. Outro ponto que acho interessante é, longe de propor que o atendimento de saúde seja feito prioritariamente pela internet, mas vemos que a telemedicina está avançando. Isso poderia ser utilizado para garantir o acesso à saúde onde esse direito não chega. Por fim, fico pensando naquilo que os africanos chamam de “hora do griô”, que é essa troca de memória, de saberes ancestrais através de uma roda de convivência oral. Fico imaginando se a gente transmitisse em tempo real essas rodas para quem quisesse acompanhar, para quem quisesse participar desse momento, por exemplo, projetar uma mestra de cultura popular na parede de um prédio no meio de uma cidade grande. Seria uma forma interessante de conectar as pessoas com essas vivências”. 

Aline Braga – jornalista da TV Alese e integrante do Intervozes.

Povos e comunidades tradicionais com redes próprias

“Desenvolvimento de política pública para o fortalecimento e expansão de redes comunitárias associadas a um processo de letramento digital antirracista, promovendo o acesso à internet de qualidade e garantindo articulação digital a comunidades e povos tradicionais em busca da construção de uma nova perspectiva de internet”.

José Vitor – Aqualtune Lab

Cinema de Terreiro

“Meu sonho seria que o governo desenvolvesse uma política pública que estimulasse a formação de centros de exibição de cinema em periferias voltados para produções negras da África, do Caribe, da América Latina. Seriam salas de cinema com negócios pretos de roupas, comidas, artes, na entrada. Vários lugares por todo o país. Que essas salas fossem adaptadas para outras linguagens artísticas, que tivesse teatro, dança… É essa a minha viagem!  Ah, teríamos também uma distribuidora preta, para que os filmes pudessem circular”.

Pedro A. Caribé – Coordenador do Museu Digital Cinema de Terreiro e doutor em Comunicação pela UnB.

Redações mais pretas

Acho importante ressaltar o caráter educativo que a mídia tem que ter no Brasil. Por muito tempo, a indústria cultural reforçou um discurso nocivo à grande parte da população brasileira — que é, sobretudo, preta, feminina e periférica. É nossa responsabilidade, enquanto comunicadores, reverter esse cenário e isso passa pela diversidade nas redações — e também nos cargos de liderança — e pela representatividade de vozes na mídia brasileira. Essa deve, inclusive, ser uma preocupação de qualquer projeto de regulação midiática que se proponha neste país.

Gabriel Veras – jornalista e cofundador da Abaré – Escola de Jornalismo

A gira está aberta.

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