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Enquanto acelera PL do veneno, governo não divulga informações sobre intoxicações por agrotóxicos

Ausência de dados públicos atualizados dificulta discussão qualificada de projeto que pode agravar desregulamentação do setor e ampliar cenário de mortes no campo

Nivalda Maria Araújo sofreu intoxicação ao ter contato com o agrotóxico Dormex em fazenda de uva. Crédito: Eduardo Amorim
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Enquanto a mídia começa a discutir as diferenças entre as alas que respondem pelo Meio Ambiente e Agricultura na equipe de transição da futura gestão Lula e Alckmin, alguém pode se perguntar: como estão os números relativos a intoxicações por agrotóxicos no Brasil? Afinal, parece interessante – e necessário – termos ideia do número de mortes no campo causadas pelos produtos químicos antes de continuar o processo de desregulamentação do setor. Quem fizer essa pergunta perceberá que o Governo Federal impede qualquer debate qualificado sobre votações importantes como a do Projeto de Lei 1.459/2022, conhecido como o PL do Veneno.

Antes de discutir mudanças na legislação, seria preciso analisar os dados públicos , afinal os parlamentares têm uma responsabilidade que pode acabar com milhares de vidas em diversas regiões do país. Em um setor tão dinâmico, com mudanças rápidas, como é o agronegócio brasileiro, é preocupante e não tem explicação plausível para a falta de atualização do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas, que em novembro de 2022 recebeu dados apenas referentes a 2017.

O silenciamento em relação aos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021 de uma das mais importantes ferramentas de comunicação da saúde pública brasileira gera consequências para pesquisadores, que são impedidos de atualizar suas publicações com dados dos últimos anos; médicos, que não conseguem atualizar previsões e analisar cenários específicos; gestores públicos do Executivo, que passam a tomar decisões e implantar medidas baseados em números antigos. Jornalistas, que não podem informar sobre o tema para a sociedade; e para os parlamentares que, se tiverem alguma responsabilidade pública, compreenderão ser necessário deixar para depois da atualização dos sistemas do Ministério da Saúde qualquer votação sobre os agrotóxicos no Brasil.

Narrativas em disputa e o papel da mídia

Existe uma narrativa muito forte, entre empresários do setor, que lembra o crescimento das alternativas biológicas para enfrentar as pragas e os cuidados necessários para quem exporta, que precisa atender legislações muito mais rígidas que a brasileira. No entanto, vale lembrar que os agrotóxicos atingem toda a população brasileira. Desde os pequenos agricultores do Vale do São Francisco, as famílias que sofrem com pulverização aérea sobre suas comunidades, como na Mata Sul de Pernambuco, até o consumidor que quer receber produtos livres de veneno em sua casa e também pode acabar sofrendo doenças no longo prazo. 

Essas são algumas dentre as tantas perspectivas sobre os agrotóxicos no Brasil. Porém, a falta de dados atualizados por fontes oficiais torna o debate menos qualificado e pode gerar ainda mais desconfiança entre os diversos lados desta disputa.  Mesmo os sistemas que vinham sendo utilizados pelo Ministério de Saúde ainda são criticados por cientistas. “O Brasil carece de dados de número de intoxicações por não possuir ainda um sistema de registro eficiente capaz de identificar especificamente os agrotóxicos envolvidos nos casos de intoxicações agudas e crônicas. Existem vários sistemas oficiais que registram intoxicações por agrotóxicos no país, mas nenhum deles tem respondido adequadamente como instrumento deste tipo de agravo”, foi o que disseram sete pesquisadores(as) em diz artigo publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia, em 2020.

Em um tema que possui diversas óticas de análise, e que carece de informações oficiais, ganha ainda mais relevo a contribuição dos meios de comunicação, que, como concessões públicas, têm a responsabilidade de debater com profundidade as problemáticas nacionais, especialmente quando há tentativas de aprovação de um PL tão importante faltando apenas um mês para a posse do novo governo. 

Neste sentido, importante lembrar o papel da TV Globo, que tem uma campanha com mais de seis anos que é um modelo de sucesso na publicidade brasileira pelo volume de captação de patrocínios: Agro: a indústria-riqueza do Brasil. Ao pesquisar os seis primeiros anos deste material, que influenciou o surgimento de outros materiais publicitários com narrativa que valoriza o agronegócio, como as campanhas “Todos a uma só voz”, de diversas associações de produtores rurais, e “Na estrada com quem faz” da Chevrolet, apenas cinco vezes foram faladas as palavras defensivo (uma vez), agrotóxicos (três) e veneno (uma). 

Apesar de em praticamente todos os 143 comerciais da campanha da TV Globo terem imagens dos belos campos da monocultura, com a uniformidade que só é possível fazer em larga escala com utilização de agrotóxicos e outros produtos químicos, nenhuma vez foram abordados os problemas de saúde que podem ser causados para trabalhadores rurais e consumidores. 

Ou seja, enquanto o Governo Federal omite números importantes, a mídia acaba distorcendo um debate ao deixar de apontar questões essenciais, como as intoxicações por agrotóxicos e outras doenças causadas pelos produtos químicos. A narrativa é repetida quando aparecem as poucas referências aos agrotóxicos na campanha Agro: a indústria-riqueza do Brasil. Em todas as aparições do tema, seja com a palavra veneno, agrotóxico ou defensivo (agrícola), os comerciais dizem que técnicas como a das agroflorestas, o controle biológico ou melhoria genética podem diminuir a quantidade de agrotóxicos utilizados nas lavouras.   

Em janeiro de 2020, por exemplo, foi ao ar um episódio chamado Conheça as agroflorestas. O texto diz: “Pesquisadores brasileiros desenvolveram nos últimos anos um jeito de plantar árvores juntos com lavouras e pastos. São as agroflorestas, tem cacau e pimenta no meio da floresta amazônica, gado junto com eucalipto, soja e milho no cerrado e hortaliças cultivadas por pequenos produtores em canteiros que convivem com pomares de mamão, banana e outras frutas. As agroflorestas já ocupam mais de 13 milhões de hectares no Brasil, elas usam menos agrotóxicos e ajudam a preservar o meio ambiente”.

Além de questionável, porque quem trabalha com agroecologia sempre defenderá que agroflorestas são técnicas que não utilizam agrotóxicos químicos, o texto também silencia as agriculturas indígenas, em que eram e são praticadas técnicas milenares para implantação de sistemas agroflorestais em regiões como a Amazonia e a Caatinga. No Sertão,  a ?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> style="font-weight: 400;">purnunça (ou mandioca braba dos indígenas) é a base da agricultura Xukuru, de onde se faz, por exemplo, uma mandioca extremamente saborosa e hoje agricultores sertanejos conseguem retirar um defensivo agrícola extremamente poderoso das folhas da planta.

O resgate da purnunça e do modo tradicional de plantio da raiz são medidas importantes para lembrarmos da necessidade de reconhecimento destes saberes ancestrais para o desenvolvimento das técnicas contemporâneas de regeneração agrícolas e de enfrentamento às mudanças climáticas. Hoje, a purnunça vem sendo bastante estudada como ?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> style="font-weight: 400;">alternativa para a pecuária no semiárido nordestino, além de ser utilizada como defensivo agrícola natural em cultivos orgânicos e agroecológicos.

O debate sobre agrotóxicos é fundamental e precisa ser feito publicamente, mas a partir de dados atualizados e sem silenciamento das boas alternativas que vêm da tradição da agricultura indígena brasileira. Afinal, são essas alternativas ancestrais que podem servir à economia brasileira, à   recuperação do nosso meio ambiente e para a aceleração do desenvolvimento de ferramentas biológicas que substituam os agrotóxicos e criem alternativas que possibilitem o crescimento da produção de alimentos no Brasil e a melhoria da saúde das populações da cidade e do campo. 

* Este texto integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.

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