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COP 24, na Polônia: sucesso para quem?

Atingidos por megaempreendimentos, conflitos e desastres ambientais buscam protagonismo no debate ambiental mundial

Barragem do Fundão, em Mariana, Minas Gerais (Lucas Bois) Atingidos por megaempreendimentos, conflitos e desastres ambientais buscam protagonismo no debate ambiental mundial. Governo brasileiro já aponta retrocessos
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Teve até salto documentado e replicado no mundo inteiro, protagonizado pelo presidente da COP-24 (Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas), o polonês Michal Kurtyka. Assim foi noticiado o acordo assinado na conferência, realizada em Katowice, na Polônia, em dezembro.

A imagem foi disseminada como uma ideia de sucesso, após duas semanas de negociações. Dentro do desafiador contexto mundial, de contestação das evidências de mudanças climáticas e da degradação ambiental, pode parecer um respiro. Mas quem essa comemoração toda representa?

As pessoas mais atingidas pela degradação socioambiental em todo o mundo têm sido mantidas bem distantes dos holofotes da mídia. Por isso, buscam espaço para contar suas próprias histórias. A tarefa não tem sido fácil em muitos países, como é o caso do Brasil. E em poucos dias de composição do novo governo de Jair Bolsonaro, já foram anunciados obstáculos que representam enormes retrocessos em um campo já fragilizado.

Entre os exemplos, está a transferência da tarefa de demarcação de terras ao Ministério da Agricultura, historicamente ligado à bancada ruralista e interessado na negação do acesso à terra pelos povos indígenas, para que a mesma seja usada para monocultura do agronegócio. Além disso, outro mote do governo tem sido a promessa de flexibilização do licenciamento ambiental, embora o instrumento já seja comumente desrespeitado no processo de aprovação de megaprojetos de alto impacto social e ambiental.

E onde entra a justiça socioambiental?

A maioria das notícias e análises publicadas sobre a COP-24 exaltavam o que foi chamado de “livro de regras”, pacote de diretrizes que visa à implementação do acordo de Paris, assinado em 2015, na COP-21. Reportagens e artigos foram recheados de expressões como “mecanismos de mercado” e “economia de baixo carbono”, vocabulário bastante colado à lógica empresarial da sustentabilidade e que têm orientado também a cobertura jornalística sobre o tema, assim como as poucas falas sobre questões ambientais da equipe do novo governo, como da ministra da Agricultura, Tereza Cristina Dias, grande aliada do agronegócio.

Rara, no entanto, é qualquer menção à justiça socioambiental, cujo foco é não apenas pensar na floresta de pé como algo isolado – até porque isso não existe -, mas em entender as relações respeitosas entre as pessoas e o meio ambiente em que vivem, levando em conta também a desigualdade com que as pessoas são afetadas pelo modelo de desenvolvimento dominante atualmente. Aliás, desigualdade essa que começa exatamente pelas narrativas.

América Latina lidera número de conflitos ambientais

Leia também: COP24 chega a consenso contra mudança climática

Cresce aceleradamente o número de pessoas atingidas por megaempreendimentos e conflitos ambientais. São casos de empreendimentos para geração de energia, mineração, expansão do agronegócio, desastres ecológicos ligados a atividades econômicas, land grabbing, entre outros.

O Atlas de Justiça Ambiental (EJATLAS) já tem documentados 2.650 casos de conflitos ambientais, sendo a maior parte deles na América Latina. O Brasil é um dos países mais perigosos no mundo para ativistas ambientais, como mostrou relatório da ONG Global Witness em 2017 e como aponta relatório da Comissão Pastoral da Terra sobre conflitos ambientais no país.

Parte do problema é que não existe acompanhamento sistemático da mídia tradicional sobre essas questões. E há, por outro lado, obstáculos para as narrativas que se surgem nos territórios afetados.

Rio Doce agoniza fora do mapa das notícias: direito à comunicação a partir dos atingidos

A violação do direito à comunicação é uma das mais recorrentes no Brasil, quando o tema é implementação de megaempreendimentos. As populações dos territórios afetados são alijadas das decisões que as envolvem. Em geral, não há acesso às informações básicas e, simultaneamente, ocorre negação da liberdade de expressão dos atingidos e atingidas. O resultado é silenciamento ou ainda criminalização dos segmentos sociais, quando estes reivindicam justiça ou a buscam se comunicar por meio de estratégias próprias.

Passados três anos (completados em 5 de novembro de 2018) do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana-MG, as reparações de danos causados pela empresa Samarco/Vale/BHP Billiton estão longe de ser concluídas. Os problemas levaram o Ministério Público Federal, no âmbito de ação judicial (Ação Civil Pública nº 0023863-07.2016.4.01.3800), a iniciar um processo de escolha de assessoria técnica independente para acelerar negociações. Enquanto isso, a população busca espaços para vozes marginalizadas.

A ruptura da barragem de rejeitos da mineradora soterrou o subdistrito de Bento Rodrigues, matou 19 pessoas, deixou 1.500 desabrigados, 41 municípios atingidos e contaminou o Rio Doce, um dos maiores do Brasil, causando o desabastecimento de água em várias cidades e transtornos irreversíveis às pessoas e ao meio ambiente. Hoje, uma das primeiras reclamações que se ouve de atingidos e atingidas é que as informações são imprecisas e não transparentes.

Leia também: Possível saída do Brasil do Acordo de Paris vira tema na COP24

Jornal A Sirene – Para não Esquecer: comunicação como direito

Com o objetivo de denunciar o crime ambiental e abrir espaço para narrativas locais sobre o ocorrido e suas consequências, o jornal impresso “A Sirene – Para Não Esquecer” foi criado em Mariana-MG três meses após o rompimento da barragem. Este meio de comunicação é produzido pelos “sirenistas”, nome dado às vítimas, para lembrar que, se a Samarco tivesse cumprido a obrigação de acionar uma sirene no momento do rompimento, as populações próximas à barragem poderiam ter fugido a tempo.

O jornal também questiona a lógica da cobertura midiática que, em geral, garante voz e manchetes a especialistas e fontes ligadas à mineradora Samarco, deixando de lado atingidos e atingidas. A falta de confiança em relação à imprensa levou à participação por parte dessas pessoas na produção das matérias do jornal, desde a elaboração das pautas, passando pela escrita e a edição final, criando um processo de registro das narrativas locais.

A população também menciona o uso da linguagem técnica pela Samarco, que impede acesso democrático à informação. O tema é abordado, por exemplo, na edição nº 29 de A Sirene – Para Não Esquecer, de agosto de 2018, com a matéria “Falar na nossa língua”.

Mariana é exemplo de silenciamento

“O nosso imaginário social destinou um lugar subalterno para o silêncio”, diz a analista de discurso brasileira Eni Orlandi, no clássico livro As Formas do Silêncio.

O caso de Mariana, apesar da repercussão internacional, guarda muitos temas silenciados e é exemplo de situação que se repete em todas as regiões do Brasil. Isso ocorre não apenas na mídia tradicional, mas na circulação de informações na internet como um todo. Novas tecnologias promovem um amplo sistema de desinformação e controle. Com a internet cada vez mais dominada por poucas grandes corporações, promove-se a invisibilização de assuntos e populações marginalizadas.

Alguns exemplos são hidrelétricas, como a de Belo Monte, grandes empreendimentos hídricos (Transposição do São Francisco), rodoviários e ferroviários (Transnordestina), investimentos públicos e privados como o Porto de Suape, entre outros. Existem também muitos exemplos urbanos dessas situações, como as remoções que foram realizadas nas 12 sedes da Copa do Mundo de 2014.

Para as pessoas atingidas e para a população de uma maneira geral, afetada direta e indiretamente pela degradação ambiental em todo o mundo, não há muitos motivos para saltinhos eufóricos, quando se olha para o que está em curso. A esperança vem, no entanto, de outras práticas de comunicação que surgem e buscam conexão em rede. É sobre o direito de comunicar e também o de simplesmente existir.

*Os três autores são jornalistas e integrantes do Intervozes. Camila Nobrega é doutoranda em Ciência Política na Universidade Livre de Berlim, Eduardo Amorim é doutorando em Comunicação no PPGCOM-UFPE e Raquel Baster é mestre em Comunicação pela UFPB

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