Intervozes

Um negócio familiar e pouco transparente: donos da mídia nas eleições

Nas cinco regiões do país, candidatos e seus familiares acumulam concessões de radiodifusão de forma pouco transparente

Josiel Alcolumbre, irmão de Davi Alcolumbre, candidato a prefeito de Macapá. (Foto: Reprodução / Facebook) Josiel Alcolumbre, irmão de Davi Alcolumbre, candidato a prefeito de Macapá. (Foto: Reprodução / Facebook)
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Por Paulo Victor Melo*

“Senador, o microfone é todo seu”.

“Não só o microfone, meu rapaz, mas a rádio toda”.

O diálogo entre um repórter da rádio Rural de Concórdia, interior de Santa Catarina, e Atílio Fontana [então senador da República], relatado em matéria do Jornal do Brasil, em 7 de dezembro de 1980, permanece emblemático de um fenômeno que se revela nocivo à democracia: o controle de meios de comunicação por políticos com mandato eletivo.

À época, havia ao menos uma centena de deputados federais e senadores com propriedade de rádio e televisão.

Três décadas depois, as eleições municipais de 2020 evidenciam que essa é uma realidade também de políticos que disputam prefeituras e câmaras de vereadores/as.

De acordo com pesquisa do De Olho nos Ruralistas, ao menos 51 candidatos a prefeito/a, 12 a vice e 53 a vereador/a, em todo o país, declararam ao TSE participação societária em empresas de rádio e televisão.

Já um levantamento do Intervozes feito nas bases de dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e na Receita Federal demonstra que, apenas nas capitais e duas maiores cidades de cada estado, são 19 candidatos a prefeito ou vice, de 14 estados e 14 partidos políticos diferentes, que têm propriedade direta de veículos de comunicação ou têm parentesco com concessionários de rádio e TV. Dentre os 19, 15 são vinculados a empresas de radiodifusão e outros quatro possuem mídia impressa.

É uma realidade de Norte a Sul do Brasil: o levantamento do Intervozes mostra 9 candidatos donos de mídia no Nordeste, 4 no Norte, 2 no Sudeste, 2 no Sul e 2 no Centro-Oeste. O perfil médio dos concessionários é formado por homens, brancos e ricos. Entre os 19 candidatos mapeados, 8 declararam patrimônio acima de 1 milhão de reais e 4 entre 500 mil e 1 milhão. Do total, apenas 2 são mulheres. Já em relação ao perfil racial, 11 são brancos/as, 7 pardos/as e 1 preto, o que mostra como a concentração da radiodifusão tem aspectos políticos, econômicos, de gênero e raciais.

Família, família…

Em grande medida, a propriedade da mídia no Brasil se constitui como negócio familiar. E, em alguns casos, um negócio bastante antigo.

O candidato a prefeito de Maceió, JHC, do PSB, declarou ao TSE possuir 30% de participação na Alagoas Comunicações Ltda., grupo que congrega a TV Farol e as rádios Farol FM e Francês FM. Os outros 70% da empresa estão em nome de Maria Betânia Botelho Alves, que foi secretária parlamentar da Câmara no antigo gabinete do pai de JHC, o ex-deputado João Caldas (SD-AL).

Em dezembro de 2002, a Folha de S. Paulo denunciou que João Caldas – enquanto deputado federal – coordenou esquemas ilegais que resultaram na tentativa de compra de concessões de TV em Campinas e Jundiaí, interior de SP, em licitações públicas do Ministério das Comunicações. O patrimônio declarado de JHC é de quase dois milhões de reais.

No Piauí, o atual prefeito de Parnaíba e postulante à reeleição pelo DEM, Mão Santa, declarou ter apenas R$ 360 reais de cotas de capital na rádio Igaraçu 95,7 FM. Mas uma rápida consulta ao site da Receita Federal revela que o único outro sócio é seu neto, Francisco de Assis de Moraes Souza Neto.

Em Macapá, o candidato a prefeito Josiel, do DEM, declarou ao TSE ter participação societária na TV Amazônia, retransmissora da Bandeirantes. Josiel é irmão e suplente do senador Davi Alcolumbre (DEM/AP), atual presidente do Senado. E as Organizações José Alcolumbre, que têm o nome do tio de Josiel e Davi, possuem ainda a propriedade de outras emissoras de televisão (como a TV Marco Zero, afiliada da Record, e TV Macapá, retransmissora do SBT) e rádios no Amapá.

Também na região Norte, Luciano Castro, que pleiteia a Prefeitura de Boa Vista pelo PL, é proprietário da Rede Tropical de Comunicação, grupo que administra a TV Tropical, afiliada do SBT, e as rádios Tropical FM de Boa Vista, Rede Aleluia de Boa Vista e Rádio Transamérica, de Caracaraí.

Já em Vila Velha, o candidato a vice-prefeito Ricardo Chiabai, do PSD, além de ter declarado cotas da empresa Sistema Norte de Rádio, é marido de Flávia de Queiroz Castro Chiabai, sócia da Rede Gazeta, afiliada à Rede Globo e maior conglomerado de radiodifusão do Espírito Santo.

Outros candidatos não possuem propriedade de mídia em seu nome, mas em nome de parentes próximos. É o caso de Mariana Feliciano, candidata a vice-prefeita de João Pessoa pelo PDT, que tem irmão e pai como concessionários: Renato Costa Feliciano é proprietário do Sistema Rainha de Comunicação, em Campina Grande, e seu pai, Damião Feliciano da Silva, deputado federal, também pelo PDT, é sócio da rádio 100.5 FM, em Santa Rita. Feliciano tem um patrimônio declarado de 1.917.622,77 reais.

Situação semelhante é a de João Arruda, candidato a prefeito de Curitiba, pelo MDB. Arruda não é concessionário de nenhum veículo de comunicação, mas é casado com Paola Malucelli, filha de Joel Malucelli, dono do Grupo Malucelli, que administra dezenas de veículos de comunicação no Paraná, como: Paraná Portal, os jornais Metro Curitiba e Metro Maringá, TV Band Curitiba, TV Band Maringá, TV Sinal, TV Icaraí, rádios CBN Curitiba, Band News Curitiba, Globo e Nativa de Paranaguá.

Falta de transparência dá a tônica

As pesquisas no site do TSE, da Receita Federal e no Sistema de Acompanhamento de Controle Societário (SIACCO), da Agência Nacional de Telecomunicações, escancaram que, além de familiares, esses “negócios” são também pouco transparentes.

Celso Russomanno, candidato a prefeito de São Paulo pelo Republicanos, é um dos proprietários da Rede Brasil FM, em Leme, interior paulista, conforme dados da Receita Federal e da declaração ao TSE. Uma matéria de 2012 da Folha de S. Paulo revelou, porém, que a emissora operava desde 2011 sem concessão do Ministério das Comunicações. Ainda de acordo com a matéria, a empresa utilizava uma concessão obtida pela Amazônia Comunicações Ltda., registrada no município de Cametá, interior do Pará.

Ainda que não haja qualquer informação oficial atualizada sobre esse caso, é curioso, no mínimo, o fato da Rede Brasil FM, oito anos após a denúncia, permanecer transmitindo sem registro no SIACCO.

Outro caso que demonstra a falta de transparência é o de André Gomes, candidato a vice-prefeito de Palmas, pelo Avante. Irmão do senador Eduardo Gomes (MDB/TO), líder do Governo Bolsonaro no Congresso, André declarou ao TSE possuir 25% das cotas da empresa Sistema Boa Vista de Comunicação.

Também sem registros no SIACCO, o Sistema Boa Vista obteve autorização, em 2012, conforme divulgado em diferentes portais do Tocantins, para criar a TV Boa Vista, que seria afiliada ao SBT. No site do grupo da Família Abravanel, porém, não consta qualquer informação sobre essa emissora.

Quem materializa outro exemplo da falta de transparência na propriedade de rádio e televisão é Barbosa Neto, candidato a prefeito de Londrina, no Paraná, pelo PDT, que declarou 330 mil reais de participação na Rádio Brasil Sul Eireli, de um patrimônio total declarado de  3.014.881,15 reais. Se nos registros da Receita Federal consta o nome de Barbosa Neto como proprietário e com o endereço em Londrina, no SIACCO, contudo, o mesmo CNPJ aparece com outro quadro societário (sem o nome de Barbosa Neto), além de um endereço no Jaraguá, em São Paulo.

Constituição violada

Ainda que de tão comum pareça naturalizada, a propriedade de comunicação por políticos é algo que afronta diferentes legislações.

O artigo 54 da Constituição Federal de 1988 estabelece que deputados federais e senadores não poderão desde a expedição do diploma “firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público” e desde a posse “ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada”.

A Constituição aplica aos deputados estaduais as mesmas regras que têm deputados federais e senadores sobre “sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos…” (art. 27) e submete os vereadores às mesmas “proibições e incompatibilidades…” (art. 29) que os parlamentares federais.

Anterior à Constituição, e ainda como legislação que regulamenta a radiodifusão aberta, o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, determina que “não poderá exercer a função de diretor ou gerente de concessionária, permissionária ou autorizada de serviço de radiodifusão quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial” (art. 38), como é o caso de prefeitos.

Baseando-se na Carta Magna e no CBT, organizações da sociedade civil apresentaram ao STF duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 246/2011 e a ADPF 429/2015, em que argumentam a inconstitucionalidade da propriedade de emissoras de rádio e TV por políticos com mandato eletivo (sejam do Executivo ou do Legislativo) e solicitam a revogação de atos do Poder Público relativos a essas concessões. Entre os citados nas ADPFs estão os parlamentares e atual candidatos Damião Feliciano (PDT/PB) e JHC (PSB/AL).

Democracia fragilizada

Além da violação de instrumentos jurídicos nacionais, a propriedade de mídia por políticos revela-se um problema ainda mais profundo, porque tem consequências diretas na medida em que tende a gerar desigualdades, por exemplo, nas disputas eleitorais.

Um importante posicionamento a respeito do assunto pode ser encontrado no parecer sobre a ADPF 429, encaminhado ao STF, em dezembro de 2018, pela então procuradora geral da República, Raquel Dodge. Ao analisar o pedido feito pela Advocacia Geral da União do governo de Michel Temer, que pretende suspender todos os efeitos e decisões judiciais de primeira instância referentes ao impedimento de propriedade de radiodifusão por políticos, Dodge reconheceu um potencial risco de que os políticos “[…] se utilizem dos canais de radiodifusão para defesa de interesses próprios ou de terceiros, em prejuízo da escorreita transmissão de informações” e concluiu que o fato “constitui grave afronta à Constituição brasileira”.

Qualificando de “coronelismo eletrônico”, como uma herança nas comunicações do coronelismo estruturante das relações político-econômicas brasileiras, a professora Suzy dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, frisa que o controle de rádio e TV por políticos é uma eficiente barreira à prática cidadã, que “serve para difundir a imagem protetora do coronel, serve para controlar as informações que chegam ao eleitorado e serve, por fim, para atacar os inimigos”.

Como garantir comportamento equilibrado em um programa jornalístico de rádio local, sem que favoreça A ou B, se o “dono” da emissora é candidato a prefeito daquela cidade? Como, num país com a cultura política de uso privado dos serviços públicos, acreditar que a liberdade de expressão de todos os candidatos, seja à Prefeitura seja ao legislativo, será garantida de forma igualitária numa emissora de TV que tem o seu “dono” como um dos concorrentes?

Essas são perguntas que não deixam dúvidas sobre a urgência da proibição de propriedade por políticos com mandato, inclusive os de atuação municipal, afinal, ainda que as concessões de rádio e TV sejam outorgadas na esfera federal, é no chão das cidades que as emissoras se instalam, emitem seus sinais e, portanto, têm ainda maior capacidade de influência.

* Paulo Victor Melo, jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Os dados da pesquisa do Intervozes foram coletados a partir de um trabalho coletivo, que envolveu a colaboração de Franciane Bernardes, Iago Vernek, Isadora Lira, Mabel Dias, Marcos Urupá, Mônica Mourão, Nataly Queiroz, Ramênia Vieira e Tâmara Terso.

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