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A sanha vigilantista e punitivista que orienta políticas no Brasil

No Ceará, o uso de tecnologias de vigilância na segurança pública cresceu, embalado por muita publicidade e nenhum controle social

Vigilantismo no Ceará (Foto: Reprodução)
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O ano de 2019 viu diversos estados passarem a utilizar a tecnologia de reconhecimento facial no Brasil. Segundo levantamento do Instituto Igarapé, são pelo menos 16 unidades da federação que a adotam, sendo recorrente sua utilização principalmente nas áreas de educação, controle de fronteiras e, especialmente, transporte e segurança pública.

O entusiasmo envolvendo a divulgação dessa e de outras tecnologias esconde o fato de serem envoltas por questionamentos que vão desde sua real eficácia aos danos causados à privacidade dos cidadãos em geral e, especialmente, para aqueles já alvos de discriminação. Falamos disso em artigo publicado neste blog. Uma equação difícil de resolver e que deve ser objeto de debate na sociedade, pautado por informações que auxiliem a avaliação e o controle social da tecnologia.

Não é, contudo, o que temos visto no Brasil e, particularmente, no Ceará. Neste estado, uma lei aprovada em maio de 2019 permitiu a instalação de câmeras de videomonitoramento com reconhecimento facial dos torcedores nos estádios e arenas desportivas. Em outubro do mesmo ano, a Secretaria de Segurança do Ceará anunciou que policiais passariam a poder fazer reconhecimento facial “de suspeitos” em abordagem nas ruas com uso de smartphones, por meio da ampliação das funcionalidades do aplicativo Portal de Comando Avançado (PCA), então utilizado para identificação biométrica. Desde então, propagandas ocupam emissoras de TV, páginas de jornais e toda sorte de mídias para promover essa e outras tecnologias.

Muita propaganda, nenhuma informação

A medida é parte da Nova Estratégia de Segurança Pública (Nesp), que tem como um dos seus eixos a adoção de “tecnologia da informação”. Por meio do programa, foram instaladas mais de três mil e trezentas câmeras de videomonitoramento no estado, sendo mais de duas mil e quinhentas na capital, Fortaleza.

Após o anúncio da inclusão do reconhecimento facial, solicitamos, no dia 10 de outubro de 2019, informações por meio do sistema Ceará Transparente. Foram feitas as seguintes perguntas: Quantas identificações já foram feitas a partir do aplicativo Portal de Comando Avançado (PCA) desde que passou a ser utilizado nas operações de segurança no Ceará? Como é composta a base de dados do Portal de Comando Avançado (PCA)? As imagens que serão comparadas para reconhecimento facial, por exemplo, são capturadas por meio de que dispositivos? Qual percentual de erros e acertos nas identificações? Os dados são armazenados por meio de que sistema? Eles são compartilhados com outros órgãos ou instituições públicas ou privadas? Os dados podem ser acessados pelos cidadãos em geral, mediante solicitação? Como assegurar a privacidade dos cidadãos neste contexto? Tal política está baseada em lei que autorize expressamente a adoção do reconhecimento facial? É possível obter documento que detalhe o funcionamento do aplicativo, o armazenamento, o tratamento e o acesso aos dados pessoais?

No Ceará, o direito a solicitar informações é garantido pela Lei Federal nº 12.527/11 e pela Lei Estadual nº 15.175/12. A norma fixa que qualquer pedido de informação deve ser respondido em até 20 dias, podendo ser prorrogado esse prazo, mediante justificativa, por mais 10. As perguntas, contudo, não foram respondidas até agora. Uma violação reconhecida pela Ouvidoria, que em resposta a uma reclamação relativa ao descumprimento do prazo, informou que “reconhecemos que assiste razão na sua reclamação acerca do atraso do pedido de informação de protocolo 5279452. Sobre o assunto, informamos que a demanda em atraso será tratada como recurso pelo Comitê Gestor de Acesso à Informação (CGAI). Inicialmente, o Grupo Técnico de Apoio ao Comitê Gestor de Acesso à Informação (Gta/Cgai) realizará a análise inicial do citado recurso, encaminhando-o em seguida para apreciação e deliberação dos membros do Comitê Gestor”.

A mesma falta de transparência foi apontada por pesquisadores vinculados à Rede de Observatórios da Segurança, que monitorou o uso de reconhecimento facial na segurança pública, entre janeiro e outubro de 2019, em quatro estados: Bahia, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraíba. Ao todo, foram registradas 151 prisões. A Bahia foi responsável por 51,7% delas, seguida do Rio de Janeiro, com 37,1%, Santa Catarina, com 7,3%, e Paraíba, com 3,3%.

No relatório anual da articulação, o coordenador de pesquisa da rede, Pablo Nunes, escreveu que “o monitoramento é baseado nas matérias publicadas por dezenas de veículos de imprensa e se utiliza das informações veiculadas nas contas oficiais das polícias e de outros órgãos nas redes sociais”, tendo em vista a dificuldade de obtenção de informações oficiais. Os exemplos deixam claro que a capacidade de produção e processamento de informações e o avanço sobre a privacidade dos cidadãos contrastam com a falta de transparência quando o assunto é reconhecimento facial.

Vigilância e racismo

Outro problema que vem à tona e merece ser citado é o potencial discriminatório. Nem todos os corpos são objetos dessas práticas da mesma forma ou com a mesma intensidade. O racismo estrutura as tecnologias da informação e da comunicação. O mencionado relatório aborda essa questão. Em relação aos casos em que havia informações sobre raça e cor, ou quando havia imagens dos abordados, um total de 42 casos, 90,5% das pessoas eram negras e 9,5% eram brancas, segundo o relatório. Nos registros de 66 casos havia informações sobre gênero, o que permitiu aos pesquisadores notar que 87,9% dos suspeitos foram homens e 12,1%, mulheres. A idade média do grupo foi de 35 anos. “No que se refere à motivação para a abordagem, chama a atenção o grande volume de prisões por tráfico de drogas e por roubo”, diz o texto.

Os dados confirmam a atualização da seletividade que já marca o sistema penal brasileiro. De acordo com dados de 2016, o Brasil possui 726 mil pessoas presas, das quais 55% têm entre 18 e 29 anos e 64% da população prisional são compostos por pessoas negras. A conduta tipificada como crime que mais leva pessoas às prisões é o tráfico de drogas, representando 28% da população carcerária total. Somados, roubos e furtos chegam a 37%. Homicídios representam 11% dos crimes, conforme o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), que mostra ainda que 75% dos presos não chegaram ao ensino médio e menos de 1% tem graduação. São pessoas jovens, negras e pobres as que, em geral, têm sido presas no país, realidade também vivenciada no Ceará.

Apesar das críticas e da falta de acesso à informação, a utilização tende a aumentar e conta, para isso, com o apoio do governo federal. Exemplo disso é a Portaria n° 793 de 24 de outubro de 2019, que regulamenta o uso de dinheiro do Fundo Nacional de Segurança Pública para o “fomento à implantação de sistemas de videomonitoramento com soluções de reconhecimento facial, por Optical Character Recognition – OCR, uso de inteligência artificial ou outros”.

A sanha vigilantista e punitivista que tem orientado as políticas de segurança do Brasil e do Ceará tem animado políticas como as referidas aqui, sem que sejam considerados princípios como proporcionalidade, finalidade, consentimento e transparência, que orientam a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais que passará a valer em agosto deste ano. Vale lembrar que, ainda que a lei não se aplique diretamente ao tratamento de dados para fins exclusivos de segurança pública, posto ser esta uma exceção à norma geral, a norma contém orientação para a utilização parcimoniosa mesmo em relação às exceções, que também ficam submetidas aos princípios gerais mencionados anteriormente e aos direitos do titular, entre eles o acesso facilitado às informações sobre o tratamento de seus dados (artigo 9°).

É preciso abrir um debate público sobre o tema e criar mecanismos para salvaguardar o exercício de direitos e as liberdades das pessoas, sob o risco de naturalizarmos uma sociedade permanentemente vigiada e com poderes opacos, no pior modelo orwelliano de 1984.

Atualização

O governo do Ceará respondeu no dia 20 de janeiro de 2020 ao pedido de informação enviado no dia 10 de outubro de 2019. No entanto, as informações solicitadas não foram disponibilizadas, pois, segundo o governo, estão classificadas como sigilosas:

“Em análise de vossa Solicitação de Informação, salientamos que se encontra em trâmite pedido de classificação de sigilo, junto à Controladoria e Ouvidoria Geral do Estado – CGE, referente às informações do Sistema Portal de Comando Avançado – PCA e demais especificações no tocante ao sistema de reconhecimento facial digital, com fundamento no artigo 22, incisos V, VI e VIII da Lei Estadual nº 15.175/12, dentre elas, número e especificação de apreensões realizadas através do dispositivo, especificações de memória e armazenamento, detalhe de funcionamento do aplicativo, dados armazenados e base de dados do sistema.

Desta forma, considerando o atual período de análise de classificação, no momento as informações requisitadas não podem ser disponibilizadas”.

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