Intervozes

“Conversem com suas esposas”: as imagens midiáticas da greve dos PMs

Como o jornalismo legitimou o esvaziamento das imagens das “mulheres” e do debate político na cobertura da greve de policiais do Espírito Santo

Protesto de familiares de PMs em Vitória, em 6 de fevereiro
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Por André Keiji Kunigami*

Trata-se de uma cena familiar do cinema: a personagem feminina é punida, mesmo que indiretamente, pela catástrofe que se armou. O serial killer corre, arma nas mãos, seguido de perto por uma câmera sôfrega que nos envolve, espectadores, fisicamente na ação, eventualmente alcançando a menina que vai ser morta diante de nossos olhos. No cinema de horror clássico, a mocinha que possui alguma agência é a primeira a ser morta pelo assassino, e o filme produz seu efeito pedagógico a partir da eliminação dessa agência.

Façamos agora um corte para a semana passada no Brasil, quando, durante a crise instaurada pela paralisação da PM capixaba, em 10 de fevereiro de 2017, podia-se ler na manchete do El País: “Governo do Espírito Santo endurece o tom e diz que as mulheres serão penalizadas”. A relação sem dúvida se dá num nível do imaginário midiático, e por isso mesmo revela complexidades, ambiguidades e nós discursivos que valem a pena explorar.

Dos muitos acontecimentos recentes no cenário político brasileiro talvez um dos que tenham mobilizado mais a opinião pública foi a recente paralisação da Polícia Militar do Espírito Santo. O evento se iniciou em 4 de fevereiro, quando oito mulheres, esposas de policiais, bloquearam a saída da 2ª companhia do 6º batalhão da PM em Serra, região metropolitana de Vitória, reivindicando aumento salarial e melhoria das condições de trabalho.

O Espírito Santo é o estado que menos paga aos seus policiais militares. Em poucos dias, a situação tomou proporções de calamidade pública, ocasionando mais de cem homicídios (não especificados até agora), fechamento de escolas, comércio e órgãos públicos, paralisação da circulação de ônibus e uma atmosfera de medo generalizado por todo o estado, culminando com o envio das Forças Armadas e o clima de paranoia nacional com a possibilidade de ações similares em outros lugares do País.

Ao fim, mais de setecentos policiais foram indiciados por “crime de revolta”, e a narrativa que opõe uma categoria profissional contra a sociedade foi construída pela mídia corporativa, especialmente no uso das imagens.

Uma das questões mais marcantes desse evento tão político quanto midiático foi justamente o que chamarei de seu dispositivo: as “esposas” ou “mulheres” dos policiais – palavra muito utilizada pela grande mídia para descrever e personalizar as iniciadoras do processo em que culminou a crise. Digo um dispositivo porque o simples fato de terem sido aquelas mulheres das famílias dos policiais a iniciarem a paralisação tornou-se um mecanismo sutil de distração ativado pela mídia: não é o Estado, são os policiais; não são os policiais, são as famílias; não são as famílias, são as mulheres.

Um dispositivo que não apenas personaliza um problema de ordem estrutural e sistêmica, mas também se arrisca a reproduzir uma penalização dos corpos femininos no exato momento que eles se tornam agentes políticos – ou dos próprios policiais, quando se enfatiza hipótese de ser tudo uma “armação”, um subterfúgio que se utiliza das famílias para produzir uma falsa paralisação forçada, uma vez que a greve não é um direito militar.

Ou seja, o dispositivo, que é possibilitado pela presença física daquelas mulheres diante dos batalhões e das câmeras, também inclui os próprios policiais: todos saem perdendo. Mas em qualquer uma das hipóteses, o fato é que aquelas mulheres são desprovidas de sua ação como sujeitos para se tornarem um instrumento que permite o esvaziamento – legitimado pela mídia – do debate político que deveria ali se instalar: a desmilitarização da polícia e a violência do Estado.

Um dispositivo que organiza as forças que estão ali em confronto de forma a deslocá-lo: não se trata mais dessas pautas, mas sim da proteção da sociedade “de bem”. Em vez de mudança, manutenção.

De fato, o grande nó da narrativa discursiva construída pela mídia trata-se justamente da relação entre PM e esposas, traçando conjecturas sobre a possível ação conjunta entre as duas partes. O pêndulo oscila entre afirmar a ação das mulheres ou representá-las como apenas parte do plano de greve dos policiais. Por exemplo, no dia 6 de fevereiro, a BBC publicou uma das primeiras abordagens focadas nas mulheres, relatando que os próprios policiais não sabiam da articulação, feita por redes sociais.

Na reportagem da Mídia Ninja de 8 de fevereiro, a voz é dada especificamente às familiares que se organizaram para protestar. Por outro lado, o portal G1 no dia 11 do mesmo mês anuncia que “coordenadores das forças militares e autoridades governamentais não dão credibilidade a isso pois acreditam que os PMs usam os familiares para tentar escapar de punição”.

O G1 volta a suspeitar no dia 13: “As mulheres sempre alegam que são elas que estão no comando da paralisação. Mas, para as autoridades, essa é uma tentativa de encobrir o que, na verdade, seria um motim dos PMs”. Logo em seguida, o texto nos relembra: “Sem policiamento nas ruas, uma onda de violência se instaurou”.

Numa disputa marcada por pânico, incertezas e imagens de violência, um dispositivo emerge a partir das flutuações de posições que o evento pode ter – quem fere, quem é ferido: os policiais militares, em sua estrutura de trabalho precarizada, ou a sociedade que deve ser defendida?

A estratégia que se solidifica é, obviamente, aquela que coloca os dois grupos como antagonistas. “Os empresários precisam de paz”, anunciava-se na caminhada das famílias pela paz na capital Vitória, segundo relatos, deixando claro a favor de que “sociedade” se fala.

Nas imagens, a construção desse dispositivo torna-se ainda mais clara, mesmo que talvez de forma oblíqua. Primeiro, em vídeo de 7 de fevereiro, quando a situação havia recém-adquirido contornos de calamidade, o jornal Extra, do grupo Globo, publica um vídeo no qual, de maneira bastante ensaiada e artificializada, um policial militar negocia com “um grupo de mulheres” que se encontra do outro lado do portão do 8º Batalhão, em Colatina.

Em segundo plano, outro policial filma a cena com seu celular. As falas são hesitantes e teatralizadas, como um script mal praticado que ainda não se fixou na memória do seu ator. O grupo de menos de dez mulheres responde, e uma delas discorre sobre a lista de condições e reivindicações para a câmera. Em comentário de um leitor, lê-se: “Encenação ridícula…”. Nesse vídeo, o espetáculo é uma farsa, orquestrada pela PM e executada pelas “mulheres”.

As "mulheres" dos policiais militares As “esposas” em vídeo aparentemente encenado publicado no site do jornal Extra, do grupo Globo (Reprodução)

Em outro vídeo, de 11 de fevereiro, agora da GloboNews, o repórter narra, por telefone, o acordo assinado entre PM e governo do estado, e a resistência por parte delas de acatar a negociação da qual não participaram.

“As mulheres continuam impedido a saída [dos policiais]”, diz o repórter, enquanto vemos em looping repetido por inúmeras vezes uma sequência de imagens: um grupo de policiais em um batalhão, mulheres protestando, homens das Forças Armadas com fuzis e tanques de guerra nas ruas, um carro fugindo pela praia, pessoas saqueando lojas, um carro da guarda municipal atrás de alguém em uma rua deserta.

Uma montagem de imagens “amadoras” que, na necessidade da televisão de sempre ter imagens, é repetida muitas vezes enquanto a âncora e o repórter debatem o porquê da insistência das mulheres em manter o protesto: “Quando o acordo começa a avançar essas mulheres saem, e quando elas retornam, retornam com outra proposta”, explica o repórter.

Uma montagem mostrando um estado de caos que, na sua repetição incessante sob as falas dos jornalistas da GloboNews, torna-se produto das próprias mulheres, que no discurso são referidas como empecilhos à paz.

Numa imagem, trata-se de uma encenação. Na outra, trata-se de teimosia daquelas mulheres. Falta ou excesso de verdade. Em ambos os casos, diz-se “as imagens não mentem”, mesmo quando mostrando a sua própria mentira (como no caso do Extra).

Acima de tudo, em ambos, essas “mulheres” são utilizadas pela mídia como mecanismo discursivo – e estético – que, seja como um coro ensaiado ou como agentes da desordem, funcionam como um dispositivo que regula forças que se recusam a ceder.

Do seu lugar de desejo por transformação, elas são capturadas por um dispositivo construído em imagens e discursos que logram cindir a sociedade em partes – a que deve ser defendida, e aquela que deve ser exterminada (juventude negra, pobre e periférica).

Não são mais as mulheres dos policiais, são um dispositivo-“mulheres” que reorganiza reivindicações e revoltas, transformando-as em perigo à sociedade de bem e englobando o outro lado frágil da relação institucional que são os próprios policiais, trabalhadores precarizados.

Para a mídia, um espetáculo transmitido nacionalmente em tempo real, que garante a vitimização do governo estadual (Paulo Hartung, sem partido, e seu vice César Colnago, PSDB) e que se constrói a partir do sutil esvaziamento do debate político e da mobilização de sentimentos conservadores e tradicionalistas. “Conversem com suas esposas”, não à toa, foi sugerido pelo governo como solução ao impasse.

*André Keiji Kunigami é pesquisador, mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e cursa doutorado em Literatura e Cinema na Universidade de Cornell (EUA)

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