Fashion Revolution

Indústria da moda: um espaço feito de mulheres, mas não para mulheres

Apesar de serem maioria no setor, mulheres ainda lidam com assédio, precarização do emprego e condições de trabalho degradantes

Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil Foto: Lilo Clareto/Repórter Brasil
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A moda é um setor dominado pelas mulheres, que representam 87% da força de trabalho na indústria. Apesar dessa predominância feminina, esse ambiente ainda é marcado por várias formas de desrespeito. Isso se manifesta através de assédio, precarização do emprego e condições de trabalho degradantes.

O setor é marcado por indicadores como a forte presença da informalidade, baixa presença de mulheres em cargos de liderança (menos de 25%), e, no caso do Brasil, a retomada de práticas já extintas, como a divisão do prato de comida entre mãe e filho em oficinas de costura.

Segundo levantamento feito pelo Instituto Patrícia Galvão e Locomotiva, mais de 76% das mulheres já sofreram assédio ou preconceito no trabalho, e 36% dizem já terem sofrido preconceito ou abuso por serem mulheres. Segundo a CUT, o assédio moral “se apresenta como uma forma cruel de exploração de poder, baseada, em especial, em questões sociais, econômicas e de gênero”.

A indústria da moda segue essa tendência. No Distrito Federal, em 2022, uma Vara do Trabalho reconheceu o direito à rescisão indireta de uma costureira vítima de assédio moral. Ela alega que o proprietário a chamava de nomes como “capivara” e “vaca” na frente dos colegas.

Em 2023, a fábrica da Guararapes, em Natal, foi denunciada por assédio sexual e limitação do acesso ao banheiro. Essa não foi a primeira vez que a empresa foi indiciada pelo Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte (MPT/RN). Em 2017, mais de 50 pequenas confecções terceirizadas de costura do Programa Pró-Sertão, da qual ela faz parte. A decisão, contudo, foi revertida em 2019.

Também em 2023, dessa vez na capital paulista, uma comitiva do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) identificou trabalho escravo em 150 oficinas. O ponto-chave para entender porque esses casos acontecem ano após ano, em todas regiões do país é: a precarização.

A costura é marcada, historicamente, pelo trabalho a domicílio, feito por mulheres. E, ainda hoje, o setor segue amplamente pulverizado. “Nesta organização da produção no setor, as grandes marcas e varejistas concentram o núcleo das atividades de concepção, design e propaganda dos produtos, enquanto o processo de produção das mercadorias propriamente dito ocorre de forma dispersa em meio a uma ampla rede de empresas subcontratadas”, destaca o artigo “Costurando gênero: processo de trabalho na indústria brasileira do vestuário”.

Patrícia Lemos, uma das autoras do estudo e pesquisadora da REMIR – Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista, aponta que o Brasil copia a dinâmica da fast fashion, no qual o controle dos preços e das vendas é feito pelas grandes varejistas. “Várias coleções a cada duas semanas, um volume muito grande de produtos e preços baixíssimos”, explica, “é um modo de produção que está associado a um modo de vida de consumo e exploração”.

A assistente social do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI), Carla Aguiar, detalha um pouco mais sobre a exploração: “pós-pandemia, a exploração do trabalho veio mais forte. Quando se trata de mulheres, a gente recebe muitas violências desde violência psicológica a violência sexual”. Há também casos de recrutamento de menores de idade e a volta de um indicador preocupante: a das mães que precisam dividir o prato de comida com os filhos, já que estes não trabalham (logo não ganham comida, na lógica das oficinas).

A maior parte das migrantes costureiras de São Paulo são bolivianas e mães. “Pelo menos 85% têm filhos e isso é um agravante, porque ela acaba aceitando muito mais coisas porque tem filhos para criar e tem medo de que eles possam sofrer, por exemplo, ir pra rua, não ter onde dormir”, afirma Carla.

Trabalhar em condições desgastante, com longas jornadas, que continuam na casa, onde a costureira vira cozinheira para a família e professora para os filhos, trazem danos físicos e emocionais. Patrícia aponta que a máquina de costura causa muitos acidentes, devido às ações repetitivas e postura sentada horas a fio na mesma posição. “Tem o problema respiratório por conta das químicas eliminadas no processo de manipulação de tecidos sintéticos, tem problema de infecção urinária, por segurar a urina”, relata.

Laura Marquina, psicóloga e coordenadora das rodas de conversa do CAMI destaca tristeza e depressão nos relatos das costureiras. “Elas falam ‘a pessoa admira a roupa na vitrine, fui eu quem costurei essa roupa, mas porque eu não consigo vestir? Quando que eu vou conseguir vestir?’”, relembra. Além da alta carga de trabalho, o machismo também põe na mão do esposo, “chefe de família”, o controle das economias, a liberdade de saída destas mulheres e até mesmo o CNPJ sob o qual eles iram trabalhar.

Onde estão as marcas?

Segundo o Índice de Transparência da Moda Brasileira 2023 (ITMB23), apenas 3% das 60 marcas analisadas revelam que consultam mulheres, organizações de mulheres, defensores dos direitos humanos femininos e especialistas em gênero em todas as fases do processo de devida diligência. Tal processo auxilia empresas a identificar, prevenir, mitigar e prestar contas a respeito da maneira que lidam com os impactos adversos reais e potenciais da marca.

Na experiência do CAMI, Carla afirma que são poucas as vezes que empresas da indústria da moda entraram em contato com a organização para realização de projetos duradouros, ou para contratação de mão de obra migrante. “As grandes empresas procuram a gente em projetos pontuais ou porque sofreram TAC (Termo de Ajuste de Conduta)”, relata, “algumas empresas oferecem cursos para as costureiras do CAMI, mas não são da indústria da moda”.

Em pesquisas feitas com sindicatos em diversas regiões do país, Patrícia constata uma tendência que chamou sua atenção. “Mesmo quando as mulheres migrantes querem procurar alternativas melhores, as ofertas de trabalho para elas ficam limitadas à costura. Mesmo documentadas, dominando bem o português, elas sofrem preconceito e não tem poder de negociação, não tem uma estrutura que garanta melhores condições de trabalho”, salienta.

Este ano as rodas de conversa para costureiras do CAMI completa 10 anos. É uma iniciativa feita a pedido das mulheres assistidas e é uma das formas encontradas pela organização de ajudar a capacitá-las e empoderá-las, para que elas conheçam seus direitos e possam ter um trabalho digno.

O Pixel Project lista 16 ações que a indústria da moda pode tomar para acabar com a violência de gênero. Entre elas, estão: tornar obrigatória a formação em prevenção do assédio, educar os trabalhadores sobre os seus direitos, criar um mecanismo seguro de reclamações, priorizar a segurança ambiental dos trabalhadores do setor têxtil e incluir políticas de rescisão responsável nos contratos.

Não há motivos para não melhorar os índices de igualdade de gênero e raça. Não há espaço para desculpas, são vidas em jogo. “Essas roupas bonitas que vestem homens e mulheres são feitas por essas trabalhadoras que quase não dormem, que quase não atendem seus filhos, são essas mãos lutadoras que estão fazendo com que a moda cresça”, assinala Laura.

Em entrevista ao ITMB23, foi perguntado a Dilma Chilaca, líder do Centro da Mulher Imigrante e Refugiada (CEMIR), “que conselhos você daria às marcas de moda que desejam melhorar a inclusão, a equidade de gênero e as condições de trabalho para mulheres imigrantes e refugiadas em suas cadeias de fornecimento?”, no qual ela respondeu “que sejam mais transparentes, que façam acompanhamento e escutem as vozes de todos que fazem parte”.

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