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Estamos diante de um “mercado da fé”

Hoje, nos deparamos com a venda de objetos “consagrados” que vão de tijolos, colheres de pedreiro, vassouras e fronhas ungidas

Foto: Marcos Santos/ Usp Imagens 21/03/2012 Foto: Marcos Santos/ Usp Imagens 21/03/2012
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“O Deus do Magnificat não é um Deus neutro. No conflito enfrentado com os homens, Deus se mostra decididamente partidário dos que não têm, não sabem e não podem, não para canonizar essa situação, mas para libertá-la e redimi-la”¹

Dias atrás, dialogando com alguns amigos, nos vimos falando sobre os atuais acontecimentos sócio-político-religiosos com os quais estamos sendo brindados. Vemo-nos envoltos por uma discórdia odiosa disseminada entre as pessoas por homens e mulheres inescrupulosos que se dão ao direito de brincar com a fé e a esperança dos menos favorecidos, convencendo-os de que profetas e arautos do Senhor estão em seu meio trazendo a “verdade” que deve ser seguida sem pestanejar.

Servindo-se de uma retórica -até certo ponto-, aprimorada e repleta de argumentos capazes de mexer com o emocional de muitos, tornam-se “pastores, gurus, guias espirituais” capazes de movê-los em distintas direções, desde que lhes atenda em seus objetivos, não se importando com o mal que estão causando. O medo, a imposição de regras desumanas, a chantagem emocional, a inclusão de “amuletos e objetos mágicos” por eles apresentados e vendidos como “milagrosos”, aliados a apresentações de “testemunhos” arranjados e repletos de encenações muito bem ensaiadas, são agregados à suas pregações e completam a pintura de um triste quadro social-religioso.

Não bastasse, tais “pastores, gurus e guias espirituais”, munidos de informações cuidadosamente estudadas, aliam-se a líderes políticos ainda mais inescrupulosos e ávidos pelo poder, formando um séquito desprovido de qualquer honra ou caráter, nos âmbitos religioso, político ou social. As dificuldades enfrentadas cotidianamente por milhares de seres humanos, que por imposição de uma sociedade excludente e injusta, veem-se obrigados a viver em condições miseráveis de habitação, saúde, educação e segurança dentre outros. São homens e mulheres apontados e vistos meramente como números em uma contagem estatística fria e desumana.

Por mais duro que possa parecer esta afirmação, estamos diante de um “mercado da fé”, que de novo não tem nada visto práticas levadas a cabo no passado, onde as pessoas eram convencidas de que podiam “comprar um lugar no céu” dependendo de sua “fé” e de sua generosa doação para a “igreja”. Aos mais abastados, eram oferecidas até mesmo “relíquias” de santos e santas que iam de pequenos retalhos de suas “roupas” a pedações de seus corpos.

Hoje, nos deparamos com a venda de objetos “consagrados” que vão de tijolos, colheres de pedreiro, vassouras e fronhas ungidas; sabonetes de purificação à martelos da justiça, isso para citar apenas alguns entre o vasto “catálogo de produtos” oferecidos.

Tudo isso é pavoroso. Porém, não é o pior. Há algo ainda mais cruel se construindo no âmago de milhares de pessoas que, diante de tantas atrocidades cometidas em “nome de Jesus”, começam a questionar os reais valores do cristianismo. Não é o nome de uma ou outra igreja que está sendo questionado e posto em dúvida sobre sua finalidade. Isto também! Mas é o próprio Jesus Cristo e seus ensinamentos que estão sendo reduzidos a um mero instrumento de marketing capaz de gerar milhões de reais para os bolsos e bolsas de “igrejas” e seus líderes.

Como exemplo sobre o que dissemos, podemos lembrar de líderes religiosos que apoiaram (e apoiam) pessoas que defendem o uso da força, da violência, da tortura; que condenam a identidade de gênero, que insistem em condenar e excluir pessoas que se identificam como LGBTQ+, que sentem prazer em disseminar o preconceito racial e que insistem em “garantir” que sua fé só é válida se você “se der bem” na vida com ganhos materiais e acúmulo de riquezas.

Outrossim, são aqueles que insistem em impor às pessoas que aceitem sua condição de miserabilidade como vontade de Deus para suas vidas e que as mazelas vividas no cotidiano, são frutos do “pecado” por elas cometidos. Implica dizer, que o simples fato de não aceitarem passivamente a miséria, a dor e a fome a que foram condenados, os exclui da graça de Deus e como castigo, devem “purgar”.

Servindo-se da argumentação de que o que “importa é a salvação da alma”, sentem-se à vontade para -com suas pregações-, conduzir aos mais humildes a um estado de letargia capaz de lhes transformar em objetos de fácil manipulação.

Reunindo o sofrimento como algo necessário para a salvação da alma; a miserabilidade e a fome como meio de purgar seus pecados e a obediência cega aos ensinamentos descabidos apregoados por seus líderes religiosos, homens e mulheres são instrumentalizados e conduzidos a fazerem suas vontades, que não se limitam ao campo da fé -que em si, já é algo de extrema periculosidade. São conduzidos, também, a fazerem suas vontades no campo social e político, elegendo a quem indicarem.

Não fosse tudo isso suficiente para nossa indignação como cristãos e cristãs, dias atrás fomos contemplados pelos canais da Internet, com uma transmissão que nos assustou. Estamos falando da reunião virtual realizada por padres católicos, políticos e empresários dos meios de comunicação com o presidente da república que pode ser conferida por quem desejar no canal na qual os presentes apresentaram ao presidente da república, seus pedidos de apoio e liberação de recursos e maior espaço junto aos órgão oficiais de comunicação.

O que nos deixou atônitos foram as ofertas de apoio aos atos da presidência da república em troca de terem seus pedidos atendidos. E o pior, alguns o fizeram em nome da Igreja, o que foi desmentido imediatamente após a divulgação de tal reunião, pela CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Há que se deixar claro, que não somos contrários aos meios de comunicação. Somos contrários, isso sim, ao mau uso feito por comunicadores oriundos dos mais diversos seguimentos da sociedade, que se prestam a serviços que desinformam, corrompem, disseminam ódio e rancor, que joga irmão contra irmão numa luta pela sobrevivência, que se rendem aos “presentes” oferecidos por aqueles que detêm o poder de lhes conceder o que almejam.

Em meio à cristandade, sempre existiram aqueles que ardilosamente fizeram uso de seu poder econômico, político, religiosos ou social para conquistar “reconhecimentos” e títulos que lhes capacitassem “reinar com mãos de ferro” sobre os mais necessitados escravizando, aprisionando, matando. Não foram poucas as vezes onde “em nome de Deus” milhares foram mortos ou tiveram, sob o peso da espada, que reconhecer a soberania de seus algozes, que em muitas oportunidades se diziam “guardiões e defensores da verdadeira fé”.

Mas de que fé estamos falando? Por certo, não é da fé no Deus Misericordioso e compassivo que ama incondicionalmente seus filhos. Tampouco da fé expressa por São Francisco despojada de toda riqueza, soberba, desejo de dominação, acúmulo de bens materiais. Da fé de homens e mulheres que deram suas vidas em defesa dos mais necessitados, permanecendo ao lado deles mesmo diante das ameaças que sofriam.

Cremos que aqui, podemos nos remeter àquela que foi -e continua sendo-, para milhares e milhares de pessoas, o maior exemplo de humildade, alegria, fé e esperança: Maria, a pequenina de Nazaré, Serva do Senhor e Servidora do próximo.

A narrativa registrada no Evangelho de Lucas capítulo 1, 26-56, nos fala sobre a anunciação feita pelo anjo Gabriel à Maria, de que ela será a mãe do Salvador. Um diálogo se estabelece entre os dois. Diante do que lhe é anunciado, Maria pergunta: “Como se dará isso, se eu não vivo com nenhum homem?” (Lc 1, 34), ao que lhe responde Gabriel: “O Espírito Santo virá sobre você e o poder do Altíssimo a cobrirá com sua sombra. Por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus” (Lc, 1-35). A resposta à indagação de Maria já havia sido dada. Contudo, o anjo continua: “Eis que sua parente Isabel também concebeu um filho na sua velhice, E este é o sexto mês daquela que era chamada estéril. Porque para Deus nada é impossível” (Lc 1, 36-37) diante da resposta angelical, Maria de pronto declara: “Eis a serva do Senhor. Faça-se em mim como você disse” e o anjo a deixou. (Lc 1, 38)

A narrativa lucana, nos relata a seguir a atitude tomada por Maria após a visita do anjo: “partiu apressadamente para a região montanhosa, a uma cidade de Judá. Entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel (Lc 1, 39). Em seguida, nos versículos 40-45, temos o diálogo estabelecido entre Isabel e Maria, que culmina com o “Magnificat”, o Hino de Louvor entoado por Maria em honra ao Deus da Misericórdia, da Justiça, do Amor e da Esperança (Lc 1, 46-56).

Ao se expressar em seu cântico, Maria proclama sua fé, e proclamar a fé, “consiste em anunciar o Deus em que se crê e sob cuja guia se caminha. É a tarefa de revelar sua identidade, reconhecida em seus feitos em favor da humanidade, deixando de lado as falas teóricas”, como nos ensina o padre jesuíta Jaldemir Vitório em artigo publicado na Revista Perspectiva Teológica de maio/agosto de 2018.

O artigo do Padre Jaldemir Vitório nos apresenta a “teologia” confessada por Maria nas entrelinhas de seu hino de louvor, onde nos é apresentado um Deus “desconcertante, a lançar seu olhar sobre uma humilde mulher das montanhas da Galileia, habitante de uma cidade desconhecida e mal afamada. O Deus de infinita majestade se dá ao trabalho de se debruçar sobre um ser humano extremamente humilde (…), uma vida destituída de qualquer importância social, como a da imensa maioria do povo humilde e pobre. Era isso que fazia dela uma autêntica tapeiné, uma Maria como tantas outras que existem no mundo (Lc 1, 48). Por ser irrelevante social e religiosamente, Deus lhe confia uma tarefa de extrema importância. E Maria reconhece as coisas grandiosas (…) feitas pelo Santo em seu favor (Lc 1,49), como fizera ao longo da história de Israel. É a memória dos pobres, dos que não esqueceram, como os sacerdotes no templo, quem é o nosso Deus, de que lado ele está e o que ele quer”.

Padre Jaldemir prossegue em sua exposição dizendo: (…) A misericórdia (éleos) divina estende-se a toda humanidade, passando de geração em geração, para aqueles que lhe abrem o coração e vivem no temor do Senhor (Lc 1,50). Excluem-se os que têm seus corações enclausurados no egoísmo, incapazes de reconhecer o quanto são amados pelo Deus Salvador (theós sotér – Lc 1,47). Portanto, o Deus dos pequenos, longe de ser faccioso e excludente, é o Deus da misericórdia universal, confrontado com a liberdade humana, a quem compete acolher ou não sua oferta de amor. Enquanto os pequeninos e os pecadores acolhem o dom divino, os grandes e poderosos o rejeitam.

Os versículos 51-53 descrevem a visão de sociedade, na leitura teológica dos pequeninos. ‘A voz que se expressa em Miriam é a voz dos marginalizados e humildes, ela anuncia precisamente a felicidade para estes grupos’.(…) O cântico de Maria proclama, de forma profética, a ação transformadora de Deus nas relações sociais. Embora use termos em contraposição, não defende mera troca de papéis: quem está em cima passaria para baixo e vice-versa. […] ‘Maria alimenta a esperança de que vale a pena sonhar e criar alternativas em vista de uma nova sociedade’. Por conseguinte, o modo como a pobre nazarena lê a realidade, nada tem de alienado, tampouco ingênuo. Antes, atinge a raiz das injustiças, geradoras de exclusão, opressão e morte. Essa teologia engajada sublinha um elemento importante na fé dos pequeninos: a capacidade de pensar Deus contrário à injustiça e, ao mesmo tempo, disposto a fazer uma autêntica revolução, de modo a superar as estruturas socioeconômicas, geradoras de desequilíbrios sociais, a penalizar, sempre mais, os pobres e a gerar marginalização social.

A conclusão apresentada por padre Jaldemir Vitório em seu artigo “Maria de Nazaré: modelo de discipulado cristão (Lc 1,26-56) – Narração da fé de uma pequenina” publicado na revista supra citada, pode (e deve) ser visto como um ensinamento sobre o como viver a verdadeira fé em prol de um certo Reino. Um Reino no qual não explorados e exploradores, dominados e dominadores. Um Reino onde aqueles que verdadeiramente se colocam a serviço, o fazem por amor a Deus e ao próximo e não buscam para si o acúmulo de riquezas e controle social. Ei-la:

“A dupla cena da narrativa lucana, anunciação-visitação, permite delinear a fé dos pequeninos de todos os tempos, ao descrever gestos e palavras de Maria de Nazaré. A mãe de Jesus de Nazaré torna-se paradigma exemplar de fé dos simples, ‘do que acontece com todos os pequenos, infelizes e amargurados deste mundo’, não apenas por sua condição sociorreligiosa e cultural, mas, de modo especial, no seu modo de se relacionar com Deus (anunciação) e com o próximo (visitação). Sem qualquer distinção humana que pudesse torná-la merecedora do beneplácito divino, por pura gratuidade, torna-se agraciada por Deus – kecharitoméne –, que a faz merecedora de ser a mãe de Jesus, “o filho do Altíssimo”, a quem seria dado “o trono de Davi” (Lc 1,32). Por sua pequenez, foi engrandecida aos olhos de Deus. A dinâmica da fé da pequenina Maria permite-a passar do “serviço a Deus” ao “serviço ao próximo”. A fé dos pequeninos caracteriza-se por não se limitar à relação com Deus, pela oração, e, sim, por estabelecer relações de amor misericordioso e de cuidado com os necessitados. É o pobre que se coloca todo ao serviço dos empobrecidos, partilhando de sua pobreza, com total naturalidade, sem exigir nada em troca. O encontro com Deus desdobra-se no encontro com o próximo e a contemplação torna-se serviço, num movimento ininterrupto de abertura e de doação, como se fora um círculo a englobar todas as dimensões da existência, numa unidade bem integrada.

O Magnificat de Maria, “teodiceia dos pobres”, chama a atenção para a fé dos pequeninos, capazes de falar de Deus, sem o perigo dos dogmatismos abstratos e das doutrinas desencarnadas. Maria fala do Deus libertador, solidário com os pequenos e os pobres, com quem conta para realizar grandes coisas. ‘O Deus do Magnificat não é um Deus neutro. No conflito enfrentado com os homens, Deus se mostra decididamente partidário dos que não têm, não sabem e não podem, não para canonizar essa situação, mas para libertá-la e redimi-la’. A estreita vinculação com a história leva-o a tomar partido pelos deserdados desse mundo e a agir em detrimento dos ricos e poderosos, cuja soberba abate e cujo orgulho desmascara. Esse é o Deus fiel à humanidade sofredora, proclamado na oração dos pequeninos. ‘Desde que olhou misericordiosamente, ternamente, amorosamente, ‘a humilhação’ de sua serva, Deus não afastou seu olhar de nossa humilhação: da pobreza que fere, da ferida que sangra, da alma que se comove, da morte que nos ameaça, de tantas e tantas baixezas humilhantes”.

Um aspecto da fé dos pequeninos consiste em acontecer nas periferias de todos os tipos. As muitas periferias – sociais, econômicas, políticas, étnicas, de gênero, culturais, religiosas – são o lugar privilegiado para desabrochar a fé, por ser onde não imperam o deus dinheiro, a violência e a ideologia. Porém, o simples fato de ser periferia socioeconômica não se torna, necessariamente, o lugar do desabrochar da fé dos pequeninos, pois os despossuídos socioeconomicamente podem ter o coração apegado ao dinheiro, serem violentos e sem entranhas de misericórdia no trato com o próximo.

Os pequeninos, diante de Deus e do próximo, têm a capacidade de caminhar na contramão do mundo dos grandes e dos prepotentes. Daí se verem obrigados a caminhar à margem da sociedade da exclusão, o reino dos tiranos e dos inimigos de Deus. O caminho dos pequeninos segue por trilhas diferentes, que passam por Deus e pelo próximo necessitado, num estilo de fé inteiramente existencial, sem espaço para devocionalismos vazios, que enredam o crente em práticas religiosas, que lembram as muitas “obras” do farisaísmo judaico do tempo de Jesus, sem espaço para a caridade. Ao caminhar pelas veredas da fé que se desdobra em misericórdia, o pequeno se torna grande aos olhos de Deus, sem se preocupar com a grandeza aos olhos do mundo. Por conseguinte, a fé dos pequenos, em última análise, é a fé dos verdadeiramente grandes.

Que o Espírito Santo nos conceda Sabedoria e Inteligência, Conselho e Fortaleza, Conhecimento e Temor do Senhor (Is 11, 2) para seguirmos em frente na Construção do Reino com coragem e destemor, atentos aos “falsos profetas que de nós se aproximam disfarçados de ovelhas, mas que por dentro são lobos ferozes (Mt 7, 15).

Shalom!

¹ CALERO DE LOS RIOS, A. M.; ÁLVAREZ PAULINO, M. A. El Dios del Magnificat. Isidorianum: Sevilla, v. 8, nº 15, 1999.

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