Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Vamos falar sobre branquitudes e privilégios brancos dentro dos centros espíritas?

Nós, espíritas, temos a obrigação moral de lutar contra todas as formas de opressão, em especial aquelas oriundas de raça e cor

Allan Kardec (Foto: Flickr)
Apoie Siga-nos no

“Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.” Angela Davis

Enquanto escrevia este texto, dois casos me causaram profunda tristeza. O primeiro diz respeito ao atentado ocorrido contra uma escola no Espírito Santo (toda minha solidariedade às vítimas e aos familiares e amigos/as), feito por um jovem branco, mas que, na hora de destacar a notícia, um grande jornal colocou a mão de uma pessoa negra. Conhecemos bem essa prática, chama-se racismo estrutural. Já o outro episódio que me causou, além de tristeza, muita estranheza, foi um card de divulgação de um grande evento espírita que acontecerá em São Paulo e que só tem gente branca nas mesas. Coincidência? Não acho!

Estamos no mês da consciência negra, um momento para celebrar e relembrar a luta histórica de negras e negros contra a opressão racial no Brasil. Militantes e ativistas do movimento negro preferem celebrar o dia 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, já que a data faz referência à morte de Zumbi, o líder do Quilombo dos Palmares. E, por esse motivo, o dia 13 de maio, data em que a falsa “abolição da escravatura” supostamente aconteceu, uma vez que, após a Lei Áurea, negras e negros foram entregues à própria sorte, ficando sem nenhum tipo de assistência do poder público, não tem muita relevância.

A escolha do 20 de novembro aconteceu no contexto de declínio da Ditadura Civil-Militar e de redemocratização do país. O enfraquecimento da ditadura deu força aos movimentos de oposição e aos movimentos sociais, como o movimento negro. Membros do Movimento Negro Unificado, em um congresso realizado em São Paulo, em 1978, elegerem a figura de Zumbi como um símbolo da luta e resistência de negras e negros escravizados/as no Brasil e de luta por direitos para a população negra.

E por falar em Zumbi, essa figura icônica e histórica, nunca lhe casou estranheza que ele não seja citado em livros espíritas sérios ou que ele não se comunique mediunicamente?

Você já presenciou em algum centro espírita “receberem” Luís Gama, Mariele Franco, Carolina Maria de Jesus, Mãe Menininha?

Ao contrário disso, as mensagens mediúnicas são sempre feitas por espíritos brancos, em geral homens e em alguns casos, europeus (ou que viveram na Europa em alguma encarnação).

Falar de branquitude e privilégio branco dentro dos centros espiritas é olharmos para tudo isso com muita atenção e profunda empatia. E não me venha com a desculpa rasa de que espirito não tem cor.

Quantos/as trabalhadores/as de casas espiritas são negros/as e estão em posição de destaque, como dirigentes ou responsáveis por notáveis tarefas?

Embora esse não seja meu lugar de fala, já que tem muitos irmãos e irmãs negros/as invisibilizados/as a partir de suas próprias narrativas, penso ser importante debatermos – dentro e fora do movimento espírita – branquitudes, privilégios brancos, combate ao racismo estrutural e institucional, a necessidade de ações afirmativas para o povo negro e o estímulo a luta antirracista.

Após essas explicações, peço licença para, enquanto homem branco e a partir das minhas vivências, trazer esse tema para o debate no meio espírita, sabendo que há várias produções e contribuições de pesquisadores/as e educadores/as negros/as na área do direito, da educação, da comunicação, da religião e do bem viver, que me inspiram nesta reflexão, como do pastor e teólogo Ronilso Pacheco, das Iyalorisas Winnie Bueno e Luciana Bispo, do professor e Babalawô Ivanir dos Santos, da escritora Juliana Borges, dos Babalorixás e doutores Sidney Nogueira e Rodney William, do filósofo e professor Daniel Souza, da jornalista Vanessa Oliveira, do professor Fabio Mariano, da filósofa Sueli Carneiro. Em comum, além da excelência em suas áreas de atuação e pesquisa, são todos/as amigos/as queridos/as e próximos, com quem aprendo muito, todos os dias.

Trazer à tona o triste episódio do racismo de Allan Kardec – fruto de uma visão eurocêntrica de sua época – e que deve ser debatido e combatido, para não reforçar ideias obsoletas, preconceituosas e anticristãs ainda nos dias de hoje, é uma tarefa de todos/as aqueles/as que acreditam e lutam por uma sociedade mais plural, inclusiva e sem racismo.

Sua postura racista se manifestou em textos distintos e trago dois exemplos: em um artigo publicado na Revista Espírita em 1862 e outro, que aparece em Obras Póstumas (portanto não foi publicado por Kardec e talvez ele não o publicasse, suponho). O primeiro se chama “Frenologia Espírita e a perfectibilidade da Raça Negra” e o outro, “Teoria da Beleza”. Eis o trecho, a meu ver, mais problemático:

“Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior, isto é, primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já constitui um progresso que levarão para outra existência e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório em melhores condições. Trabalhando em sua melhoria, trabalha-se menos pelo seu presente que pelo seu futuro e, por pouco que se ganhe, para eles é sempre uma aquisição. Cada progresso é um passo à frente, facilitando novos progressos. (Allan Kardec, Perfectibilidade da Raça Negra. Revista Espírita, abril de 1862.)”

Em 2006, lembra o amigo e pesquisador Elias Moraes, a Federação Espírita Brasileira e as demais editoras que publicam a obra literária de Allan Kardec foram acionadas pelo Ministério Público da Bahia em virtude de 106 referências consideradas racistas ou preconceituosas nos textos de Allan Kardec onde a ideia de “raça” alimentava o entendimento de que existem raças superiores e raças inferiores, e que as raças se sucedem mediante “aperfeiçoamento”, com a extinção gradativa daquelas consideradas “inferiores”. A essa crença foi dado o nome de darwinismo social. Mediante um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), as editoras espíritas foram legalmente constrangidas a inserir em cada um desses 106 pontos uma “nota de esclarecimento alusiva aos trechos nos quais se pode vislumbrar eventual conteúdo discriminatório ou preconceituoso”. Desde então todas as editoras que publicam os livros de Allan Kardec remetem o/a leitor/a, por meio de notas de rodapé, a uma nota no final do livro onde explicam “o contexto histórico, cultural e social existente na metade do século XIX na Europa, época e local em que foram redigidos os referidos textos.

Para o professor Lair Amaro, doutor em história, “é incontestável que a teoria “cientifica” da hierarquia das raças constituía uma verdade para Allan Kardec. Assim para ele (e para os espíritos superiores), as raças não-brancas encontravam-se em estágio inferior da evolução enquanto a raça branca estava no ápice.”

Todo conhecimento é fruto de seu tempo e precisamos olhar com cuidado para todas as outras obras de Kardec, que pregou a fraternidade entre todos/as, o amor ao próximo e a igualdade.

O espiritismo não é uma revelação sagrada, estanque, “imexível”. Kardec, como qualquer um de nós, cometeu equívocos e certamente, de onde ele está (no plano espiritual), deve se arrepender de algumas posturas.

Esse racismo estrutural, institucional, fruto de uma sociedade patriarcal, branca, heteronormativa, machista e preconceituosa, se manifesta, também, em pequenas brincadeiras, em chacotas, em olhares.

O sociólogo Clóvis Moura e o antropólogo Kabengele Munanga alertam que o racismo brasileiro é um fenômeno estrutural e estruturante das relações socioculturais. Moura coloca no centro do debate o racismo como elemento formador do Estado brasileiro. O antropólogo brasileiro-congolês aborda a falsa democracia racial e as particularidades do Brasil em comparação a outros países.

Nós, espíritas, temos a obrigação moral de lutar contra todas as formas de opressão, em especial aquelas oriundas de raça e cor. É necessário levantar a discussão, estimular e contribuir para a reflexão e promover ações propositivas para a superação do racismo e do genocídio negro.

É fundamental o diálogo entre comunidades de fé e movimentos sociais, movimentos negros, a confecção de materiais educativos que abordem o combate ao racismo e auxiliem na formação de irmãs e irmãos sensíveis aos problemas sociais. O racismo não pode ser retirado do debate no campo da fé.

Não basta apenas não sermos racista, como assegura Davis, esse é um dever legal, moral e cristão, devemos ter uma postura antirracista, condenando, combatendo e reprimindo, diariamente, todo tipo de preconceito e segregação por raça e cor, dentro e fora das nossas comunidades de fé.

Temos que transformar nossos centros espíritas em verdadeiras escolas de ética, cidadania e vivência plena do evangelho. Devemos debater, com base em leituras evangélicas e antirracistas, o racismo estrutural da nossa sociedade branca e eurocêntrica, afinal, quem inventou o racismo fomos nós os/as brancos/as e cabe a nós todos os esforços necessários para erradicá-lo.

Sugestões de leituras sobre racismo que vão te ajudar a lutar contra o preconceito:

  1. Mulheres, raça e classe, de Angela Davis, Boitempo;
  2. Pequeno manual antirracista, de Djamila Ribeiro, Companhia das Letras;
  3. Entre o mundo e eu, de Ta-Nehisi Coates, Objetiva;
  4. Como ser antirracista, de Ibram X. Kendi, Alta Cult;
  5. Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça, de Reni Eddo-lodge, Letramento;
  6. Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo, de Gabriel Nascimento, Letramento;
  7. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos, de C. L. R. James, Boitempo;
  8. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, de Abdias Nascimento, Perspectiva;
  9. Racismo, sexismo e desigualdade racial, de Sueli Carneiro, Selo Negro Edições;
  10. De bala em prosa: vozes de resistência ao genocídio negro, de vários autores, Editora Elefante;
  11. O poder da cultura e a cultura no poder: uma disputa simbólica da herança cultural negra no Brasil, de Jocélio Teles dos Santos, Edufba;
  12. Os negros na América Latina, de Henry Louis Gates Jr., Companhia das Letras;
  13. Cartilha de combate ao racismo institucional, Abong, disponível em: https://abong.org.br/wp-content/uploads/2020/11/Cartilha-Racismo-Institucional.pdf

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo