Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Sobre as décadas de estudos sobre evangélicos e política no Brasil

Temos estudado a estreita relação deste grupo religioso com as mídias, com o mercado de bens de serviços e com a participação na política institucional e não-institucional

Foto: Pexels/Creative Commons/Pixabay
Apoie Siga-nos no

Há alguns dias, participei do seminário “Religião e Poder”, promovido pelo Instituto de Ciência Política (IPOL), da Universidade de Brasília. O momento foi aberto com a conferência “30 Anos de Estudos sobre Evangélicos e Política no Brasil”, em referência ao trabalho do professor emérito Paul Freston. Em seguida, ocorreu a mesa sobre o tema geral “Religião e Poder” com apresentação de cinco pesquisas contemporâneas relacionadas à temática dos evangélicos na política (entre elas, uma síntese das minhas).

A contribuição de Paul Freston foi muito bem destacada no evento. A tese de doutorado que ele defendeu em 1993, no Departamento de Ciências Sociais da Unicamp, “Protestantes e Política no Brasil: da Constituinte ao Impeachment”, é uma referência acadêmica importante. Ela apresenta uma síntese do caminho que já havia sido aberto por organizações não-governamentais, no tratamento do tema, ao lado de alguns pesquisadores da religião. 

Freston recupera a memória da presença dos evangélicos na política desde a Independência do Brasil, para compreender o protagonismo conquistado por este segmento cristão no processo constituinte de 1987-1988 até o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello (1992).

Sobre organizações não-governamentais, as referências eram o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI) e o Instituto de Estudos da Religião (ISER). O CEDI foi criado em 1974, como um desdobramento e ampliação do Centro Ecumênico de Informação (CEI, 1965), herdeiro da Confederação Evangélica do Brasil (1934).  O ISER foi criado em 1970, inicialmente como Instituto Superior de Estudos Teológicos (ISET), e teve as reflexões originais ampliadas e os objetivos redefinidos, em movimento de aproximação a pesquisadores da religião ligados a universidades brasileiras. 

O CEDI, desde a sua origem, por meio do boletim Aconteceu no Mundo Evangélico e da revista Tempo e Presença, da publicação de livros e um setor de Documentação com um riquíssimo acervo sobre Catolicismo e Protestantismo no Brasil, oferecia conteúdo inédito e substancial a pesquisadores e interessados na relação igrejas-política no Brasil. As atividades do CEDI com evangélicos, católicos e outros grupos religiosos e o acervo construído têm continuidade por meio da organização Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço, criada em 1994.

O ISER passou a conduzir pesquisas e conhecimento com base na percepção da religião como um fator fundamental de mudança social, de compreensão e atuação na sociedade brasileira, inclusive no que diz respeito à formulação de políticas públicas. Os resultados, ao lado de outros estudos acadêmicos de pesquisadores da religião, com os quais a organização se relacionava, passaram a ser disponibilizados, inicialmente, pelos Cadernos do ISER, e, a partir de 1977, pela revista científica Religião e Sociedade, pela Comunicações do ISER, por livros e relatórios

Na tese, Paul Freston, entre outras conclusões, afirmava que o peso político dos pentecostais aumentaria nos anos seguintes (um profeta?!). Ele registrou o desafio para a academia de superar a sociologia do protestantismo aplicada “em nível micro” e “renovar com estudos macro do campo protestante, sobretudo as grandes igrejas pentecostais – entender sua compreensão de missão”. 

Freston reconheceu ainda que as igrejas pentecostais (então chamadas “seitas”), “de origem pobre começam a se relacionar e se possível se apropriar do Estado. O desfecho deste pioneirismo é imprevisível” (mais uma profecia?!).

Em sua conferência no evento da UNB, dias atrás, o pesquisador emérito vê o crescimento evangélico próximo do populismo político, encarnado na figura do ex-presidente Jair Bolsonaro, que contou, e ainda conta, com apoio incondicional de boa parte deste grupo. Porém, ele reconhece os muitos riscos que os evangélicos correm com tal postura, em especial, no tocante à imagem pública de uma comunidade fragmentada que se encontra dividida e deteriorada. 

Trinta anos depois, com a academia respondendo ao desafio de renovar os estudos em nível macro, estamos discutindo como os evangélicos saíram da condição de minoria invisível para uma visibilidade publicizada. Temos estudado a estreita relação deste grupo religioso com as mídias, com o mercado de bens de serviços e com a participação na política institucional e não-institucional. 

Esta nova postura e imagem se localiza no contexto do que chamei de cultura gospel no início dos anos 2000, com a recriação da identidade religiosa evangélica. Com ela, há um alargamento das fronteiras delineadas no passado entre sagrado e profano, agora baseado numa relação em torno da tríade música-consumo-entretenimento. E a participação política em interação no espaço público é elemento fundamental neste processo.

Na mesa que se seguiu no referido evento, com as pesquisas contemporâneas apresentadas por colegas da UNB e da Universidade Federal de Minas Gerais, tais elementos foram ressaltados. Foram expostas ênfases relacionadas à força das lideranças evangélicas em mídias sociais como influenciadoras no campo da política e da cultura, ao importante lugar das mulheres, a maioria do segmento, e ao papel das minorias progressistas, de esquerda, que resistem ao ultraconservadorismo com busca de espaços contra-hegemônicos.

Fato é que os 30 anos de estudos sobre evangélicos na política mostram como este grupo religioso se coloca na arena pública como um bloco organicamente articulado. Não são mais “os crentes” ou os grupos fechados de outrora. A separação social, “do mundo”, deixa de ser um valor evangélico da tradição fundamentalista-puritana: são hoje um grupo religioso que se vê fortalecido como parcela social. Têm suas próprias reivindicações e podem eleger seus representantes para os espaços de poder público, sejam eles internos ao grupo ou não! Se incomodam com estereótipos e incompreensões sobre eles que acabam por homogeneizar seu jeito de ser e viver a fé que é, na verdade, plural, avesso a enquadramentos impostos até mesmo pelas próprias lideranças.

Eis aí um caminho aberto à pesquisa, orientado pelo pioneirismo dos anos 80 e 90, representado no evento da UNB por Paul Freston. Uma trajetória que aponta para novos olhares, instigados pela dinâmica estimulante do Brasil contemporâneo, diverso e, nas palavras de Freston, “imprevisível”.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo