Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Se não pudermos ser cura, não sejamos mais adoecimento

A guerra e a ausência de diálogo, bem como a rejeição da alteridade que nos constitui, afastaram a reconciliação até do seu lugar mais importante, ou seja, a religião

Foto: iStock
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Passei duas semanas, tentando escrever algo para partilhar com vocês que me acompanham por aqui. Tenho pensado muito na ideia de reconciliação, mas não é uma ideia comum atualmente.

Tenho a sensação de que até a religião a perdeu de vista. O poder, o capitalismo, os egos inflamados, a necessidade de protagonismo midiático, a guerra e a ausência de diálogo, bem como a rejeição da alteridade que nos constitui afastaram a reconciliação até do seu lugar mais importante, ou seja, a religião.

Nesse sentido, não é tarefa fácil se manter próximo à ideia de reconciliação, falar e escrever sobre isso em uma sociedade que foi levada a se esquecer disso.

Não se pode negar que há uma onda avassaladora de ódio sobre a nossa sociedade. Eu nem sei o que pensar, o que dizer, o que fazer. Não raro, perdemos mesmo as forças, até a vontade de lutar por um mundo mais gentil, mais generoso, mais “humanizado”, mais reconciliado.

Não se pode negar que há um discurso político do quanto pior melhor para o agravamento da desigualdade e estigmatização de existências “minorizadas”.

Parece que algumas pessoas, que deveriam criar políticas para o fomento da equidade social, estão em um “reality show”, diante das câmeras e só elas importam, só os seus desejos, só as suas verdades e vontades.

Algumas situações nos lembram muito histórias já vividas. Histórias essas que não devem ser esquecidas, mas que não deveriam ser revividas, mesmo que fantasiadas de boa intenção e preocupação com a sociedade.

Há um ditado popular de terreiro que diz: “o mal não pode receber acenos.” É isso, não se pode sequer acenar leve, gentil e sutilmente para o mal, porque o mal é o mal e o mal só produz o mal. O mal é estéril, terra árida, ouvidos cerrados, ideias estereotipadas e se alimenta de verdades absolutas e improdutivas. O mal sempre está com as portas fechadas para o mundo. O mal é um pouco narciso, ou seja, só acha que pode existir o que lhe é espelho. Este é o mal. O mal não se reconcilia. O mal odeia reconciliação.

Diante do mal, nós também acabamos tomados por uma onda de extremo pavor, de raiva, de decepção e de sentimentos que vão nos tornando cada vez mais rígidos, endurecidos e pouco gentis. Isso não pode ser bom.

Tenho dito aqui, de modo até repetitivo, que as pessoas não nos conhecem. Falo agora sobre nós. Existências que seguem a cultura dos ancestrais, dos espíritos encantados, das forças da natureza, da multiplicidade existencial, da encruzilhada e da mutabilidade como territórios de cura.

As pessoas não conhecem uma religiosidade estigmatizada e não se pode negar que o racismo impede que as pessoas se aproximem e nos conheçam.

Muito embora a maioria das pessoas não saibam, nós, da cultura de terreiro, somos da cultura da gentileza, da cura, da saúde mental, das “famílias”, das “infâncias” e nós temos modos ancestrais negros de pensar a vida e tudo o que ela envolve. Nós somos da cultura da reconciliação, do refazimento, do recomeço, da renovação, da reorganização. Somos da semântica do prefixo “-re”. O “-re”, para nós, é um território de cura.

Obviamente que, assim como o discurso e as bases de outras religiões têm sido manipuladas e distorcidas para interesses individuais e de pequemos grupos, isso também tem ocorrido com a cultura de terreiro. Mesmo assim, no centro da cultura do terreiro está a cura. Esta palavra tem estado em minha cabeça desde que conheci, há alguns anos, a escritora estadunidense bell hooks.

Há alguns anos, eu fui chamado pela voz e pela força de bell hooks. Nascida Gloria Jean Watkins, no dia 25 de setembro de 1952, em Hopkinsville, Kentucky, nos Estados Unidos, bell adotou o nome da bisavó Bell Blair Hooks para homenagear a mulher que era uma espécie de lenda familiar por sua coragem.
bell hooks é autora de mais de 30 livros, atuou como professora universitária e como ativista feminista e antirracista.  Seu primeiro trabalho, “E eu não sou uma mulher”, nasce quando ela tinha apenas 19 anos e desde então, sua obra conversa sobre racismo, sexismo, interseccionalidade e as implicações do capitalismo nessas vivências.

A escrita de bell hooks é reflexiva e provocadora, sem afastar o leitor com academicismos e uma linguagem incompreensível. Sua fala narrativa soa como um lugar acolhedor em meio aos inúmeros ruídos existenciais e intencionalmente produzidos para nos confundir. Mas não devemos nos enganar, a escrita hookiana pode abrir velhas feridas, pode trazer desconforto e nos fazer sentir a verdade sobre nós e até nos fazer chorar.

O trabalho desta força feminina, que ouso dizer: “é uma mulher de Oxum” traz, às vezes, de modo sutil, às vezes, de modo expresso, uma mensagem das mais poderosas que eu já ouvi na vida. Ela reiterava sempre: “Eu quero que meu trabalho seja sobre a cura”.

A associação entre bell hooks e Oxum se dá pelo fato de a senhora das águas também querer ser cura por meio do amor. Entretanto, para que alguém seja cura ou para que seja curado, faz-se necessária a aceitação do adoecimento.

Imaginem a água do rio lhes acolhendo sem perguntar quem são. Você entra no rio e ele lhe refresca, ele lhe envolve, ele lhe recebe de braços abertos, ele realmente lhe abraça. É Oxum. Assim é que eu vejo a escrita e os pensamentos de bell hooks.

Ser cura é um exercício em meio a uma imensidão de ódio espalhada em todos os lugares do mundo. Precisamos nos proteger do ódio. Ódio não pode ser um valor, não pode ser naturalizado, não pode ser algo elogiável.

Eu penso que precisamos nos reconciliar conosco, até com os nossos medos e devemos exaltar a ideia de ser cura. Ser cura é preciso. Também nos curamos sendo cura. Esta é a ideia principal que deveria ser mantida pelas religiões. Sejamos todos bell hookianos, sejamos cura e, se não pudermos ser cura, que não sejamos adoecimento.

Axé!

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