Diálogos da Fé

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Religião e identidade: as bases da cultura brasileira

O candomblé pode ser definido como um sistema de significados produzido e inserido numa unidade cultural e parte essencial da identidade brasileira

Compreender o que significa exatamente a crença não só num contexto religioso, mas também num contexto cultural, ainda é um grande desafio
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Entre os vários aspectos que constituem o conjunto de costumes e hábitos fundamentais relacionados aos comportamentos, valores, ideias e crenças de um grupo social, a religião ocupa um papel crucial por se tratar de um fragmento do sistema cultural como um todo.

A capacidade de simbolizar é o que diferencia os humanos dos demais seres, ou seja, tudo que o homem produz é simbólico. Portanto, todos os conteúdos de um sistema religioso, como seus mitos e rituais, são simbólicos. De acordo com a definição do antropólogo Clifford Geertz, poderíamos dizer que além de preservar um legado cultural do povo negro, o candomblé enquanto religião constitui-se como um sistema de símbolos.

Apesar das inúmeras transformações que sofreu ao longo dos anos, o candomblé ainda pode ser considerado uma religião que guarda um patrimônio étnico-cultural, muito embora tenha se tornado, especialmente nos grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, uma religião universal, isto é, aberta a todos.

Nesse processo de transformação, uma das características que se percebe é que a organização dos terreiros deixou de ser norteada por determinados princípios e regras, como a proibição do incesto, e inseriu na ordenação de seu espaço sagrado outros elementos, como a necessidade de introdução de seus adeptos no mercado formal de trabalho.

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Enquanto parte de um sistema cultural, toda religião se modifica, se adapta a novas realidades. A cultura é dinâmica e, como sistema de símbolos, a religião submete seus rituais e mitos a processos de releitura, de ressignificação. Isso acontece com qualquer religião, mas um bom exemplo foi o que ocorreu na umbanda com os elementos de origem africana fundidos aos do catolicismo e do kardecismo, num processo contínuo de sincretismo, configurando-se como uma religião fundamentalmente inclusiva.

Dessa forma, percebe-se que a religião também é dinâmica. Isso implica uma necessidade de apreender o conjunto de símbolos produzidos e vivenciados pela coletividade e a dimensão que adquirem para se compreender com profundidade um sistema religioso.

A própria visão de mundo, que expressa a maneira como o grupo concebe sua existência na natureza, por exemplo, soma-se ao fato de que vivenciar a cultura é uma forma de promover o ordenamento do caos. Sendo assim, ao entender o candomblé no contexto cultural em que foi criado, apreende-se também um pouco da essência do povo negro e, por conseguinte, do povo brasileiro.

Um mito de Exu conta que, ao nascer, esse orixá passou a engolir tudo que havia no mundo. Era uma fome tão grande, que Exu devorou todos os animais, árvores e frutas, bebeu as águas das fontes e rios, comeu a própria mãe.

Arvorou-se na direção de seu pai, Orumilá, que passou a persegui-lo com seu sabre e, ao alcança-lo, o dividiu em 201 pedaços. Para espanto de Orumilá, o último pedaço regenerou-se em Exu e continuou fugindo. A perseguição seguiu por todos os espaços do Orun e sempre que alcançava Exu, Orumilá o dividia em 201 pedaços e o último se regenerava.

Quando não havia mais para onde fugir, Exu e Orumilá fizeram um acordo. Exu devolveu tudo que havia engolido, devolveu a ordem ao universo. Daí em diante, todas as coisas e seres passaram a conter Exu, passaram a conter o princípio transformador, passaram a ter significado. Todas as coisas deixaram de ser por elas e passaram a ser pelos significados que Exu, através da boca, da palavra, da cultura, a elas atribuiu.

Exu é o orixá que transgride a ordem ou reordena a desordem. Já outras divindades representam atividades sociais como a metalurgia, a caça, a maternidade, o exercício do poder, além de estarem diretamente relacionados a diversos fenômenos e aos elementos da natureza. Também considerados ancestrais divinizados e, no contexto da diáspora, tipificados enquanto arquétipos, os orixás são elos entre o grupo e seus indivíduos.

Mesmo possuindo dimensões de comunidade, o candomblé não deixa de considerar as experiências pessoais, exaltando a cabeça de cada um como um princípio indispensável de individuação. As relações no terreiro baseiam-se na reciprocidade, nas trocas permanentes dos membros entre si e com as divindades. Esse modo de vida dos terreiros certamente inspirou as relações solidárias das periferias brasileiras. É um componente da cultura negra presente na religião e em outros territórios de resistência.

Na vida cotidiana do povo brasileiro, vários aspectos da cultura negra transmitidos pelos terreiros de candomblé estão presentes. Em algumas regiões pode-se notar com mais facilidade. É o caso da influência das comidas de santo na culinária baiana, desde os temperos e modos de preparo, até os pratos típicos mais tradicionais, como acarajé, vatapá e caruru.

A percepção e simbolismo das cores, as superstições, a maneira de interpretar os acasos ou de resolver a falta de sorte. Desde a linguagem, com palavras usuais no português que falamos no Brasil, passando pelas expressões estéticas, roupas e adornos, até o modo como nossos corpos se movimentam. Tudo isso encontra no terreiro uma base que, se não explica, pelo menos contextualiza sua origem.

Se a identidade é uma referência em torna da qual a pessoa se constitui, a herança africana preservada nos terreiros é uma marca indelével do povo brasileiro que resiste apesar de todas as expropriações e processos de branqueamento e invisibilidade.

Fora do contexto religioso, fica mais difícil ajustar nossos hábitos e costumes a suas verdadeiras origens. Na vasta bibliografia que produziu, Câmara Cascudo demonstrou o quanto a cultura brasileira é mística, miscigenada e negra.

Assim como o ritual só tem significado para quem o conhece, para quem é parte do sistema cultural que o criou, o mito só é mito para quem não acredita. Vale lembrar que a religião é dinâmica, portanto atribui significados e promove uma releitura de seus símbolos, produzindo interação entre eles. Compreender o que significa exatamente a crença não só num contexto religioso, mas também num contexto cultural, ainda é um grande desafio.

 

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