Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Por um diálogo possível entre emergência climática e fé

Os prejuízos inumeráveis à parcela menos favorecida da população tem feito com que muitas lideranças religiosas repensem a necessidade de incluir o debate climático nas discussões

Foto: FRED SCHEIBER / AFP
Apoie Siga-nos no

Diante das intensas ondas de calor seguidas de chuvas torrenciais que têm assolado diversos estados do Brasil, trago para a nossa reflexão hoje as possíveis relações entre teologia, emergência climática e o papel das comunidades de fé nessa interseção. Os prejuízos inumeráveis à parcela menos favorecida da população tem feito com que muitas lideranças religiosas comecem a perceber a necessidade de não apenas socorrer diante das desgraças, mas também iniciar uma mudança de mentalidade acerca da forma como se trata nossa casa planetária.

Como teóloga e ativista nascida em berço evangélico, numa família onde diversos segmentos dentro do evangelicalismo brasileiro estão fortemente presentes, desde cedo convivo no ambiente da igreja em denominações tanto históricas quanto pentecostais e posso afirmar que raríssimas vezes presenciei nos sermões proferidos dos púlpitos ou nos ensinamentos bíblicos ministrados aos que estavam nos bancos das classes de escola dominical algo que tivesse conexão com a responsabilidade que temos com a Terra, nossa Casa Comum.

A responsabilidade ambiental é também parte essencial de uma vivência de espiritualidade, seja ela de qual matriz for, que se preocupa com a vida em todos os seus desdobramentos e manifestações. Há inúmeros textos não apenas nos Evangelhos, na Bíblia, mas também em outros escritos sagrados do cristianismo que apontam para a profunda ligação que temos com a natureza que nos circunda; relação esta que deve ser não apenas de dependência como tem sido dito, mas de respeito e cuidado.

Nossa pertença ao bioma que nos rodeia vai além do usufruto que fazermos de áreas aprazíveis e arborizadas da cidade, que muitas vezes entram na nossa rotina como um lenitivo para o cansaço fruto da vida numa sociedade capitalista que nos exige alta performance às custas do prazer da vida simples e do bem viver. Se todas as formas de existência são importantes para a teia da vida e se as boas práticas de fé e virtudes ocorrem para que se viva de maneira mais digna e plena como indivíduos e como comunidade, por que então as igrejas não se engajam mais ativamente na defesa da pauta ambiental já que a ebulição que estamos vivendo afeta a todos nós?

Historicamente, a contemplação da natureza como fonte de nutrição para nossa subjetividade, tem feito parte da agenda dos exercícios devocionais que visam cultivar uma fé robusta e sintonizada com o mundo à nossa volta. A leitura divina, com oração e meditação, que se dá a partir dos Salmos que exaltam a natureza é uma das práticas executadas há milênios por cristãos ao redor do mundo e que nos impele a reservar um tempo em meio aos afazeres do dia para admirar a criação de Deus e tê-la como inspiração para o crescimento espiritual.

Desse contato interior com o Eterno que está imanente em tudo que nos rodeia, surgiram inúmeros escritos teológicos não apenas místicos mas também dogmáticos que beneficiaram muitas gerações de discípulos do Cristo. Porém, em algum lugar da caminhada dos séculos, essas práticas que nos colocavam na natureza como parte dela e não como usuários de seus “recursos” se perderam pelo caminho.

Isso me faz pensar no que o sociólogo alemão Max Weber afirmou acerca do desencantamento do mundo promovido pela ascensão do protestantismo histórico como força não só religiosa mas também definidora de condutas sociais mais amplas que abrangem pautas políticas, educacionais e até estéticas. Uma das consequências nefastas do binômio modernidade/colonialidade, solo onde o protestantismo se desenvolveu depois da chamada Idade Média, foi o utilitarismo que nos faz desposar uma percepção utilitária no relacionamento com a natureza, limitando-a a mero “almoxarifado” como disse a liderança indígena Ailton Krenak.

Em outras palavras, a Casa Comum passou a ser tratada como fonte de “recursos” de onde o homem retira o que precisa para enriquecer e ampliar seu conceito de civilização, agindo inconsequentemente e sem se preocupar com o cuidado, com a reposição do que foi sacado, com a manutenção da harmonia do bioma quando é este que faz com que haja sustento para todos e assim, a vida floresça em suas múltiplas formas.

Essa relação abusiva com o meio ambiente é fruto de uma mentalidade que foi contaminada pela indiferença para com as outras espécies que dividem conosco a vida nesse planeta. Em decorrência disso, todas as demandas que surgem como consequência desta relação abusiva, tais como o fim da insegurança alimentar, o direito à água, à moradia e a uma mobilidade urbana sustentável, dentre tantas outras questões que pertencem ao escopo da democracia, ficam à margem nas agendas de formação de mentalidades cidadãs no contexto religioso.

O processo educativo que ocorre formal e informalmente nas comunidades de fé não abarca essas temáticas fundamentais da vida em sociedade. A membresia não ouve falar da responsabilidade que têm como comunidade não só uns com os outros mas também com o território onde está inserida. Desta maneira, como então irão pressionar os poderes públicos por políticas que zelem pela vida através do combate ao racismo ambiental? E o direito à terra onde se possa viver dignamente e trabalhar num país onde centenas de etnias indígenas não têm suas áreas demarcadas e onde incontáveis hectares permanecem improdutivos? Quando falaremos sobre isso?

Há que se recuperar urgentemente estratégias de reflorestamento espiritual que incluam não só os fiéis em suas crises pessoais mas também o cuidado extensivo ao ambiente onde vivemos nossa experiência comunitária. Socorrer pessoas à beira da morte diante do calor escaldante que temos vivido, bem como atender, em suas necessidades, famílias inteiras que perdem suas parcas posses quando vitimadas por enchentes e outras catástrofes naturais não devem ser os únicos focos de ação das igrejas.

É preciso moldar urgentemente uma nova condição na nossa espiritualidade cristã de maneira que esta venha prevenir o deterioramento do que de humano existe em nós em contato com o território que nos pariu. Que a fé seja ferramenta de construção de novas pontes para unir os que já estão na luta, que as igrejas encontrem na ecoteologia boas sementes que façam brotar uma cosmopercepção holística, fincada em solos cheios de afeto e confiança. Sigamos por um “reencantamento” do mundo que enxergue na teologia do cuidado com a Casa Comum uma revolução que se pode alcançar.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo