Diálogos da Fé

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Olha o Gandhy aê

O maior e mais tradicional afoxé do Brasil se organiza para exaltar os orixás e fazer a festa no carnaval de Salvador

O "Filhos de Gandhy" mistura modernidade e tradição
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No domingo de carnaval a agitação começa cedo nas ruas do Pelourinho. No sobe e desce das ladeiras espalham-se homens de todos os portes, cores e idades para fazer seus turbantes e dar o toque final ao traje de gala. E se enfeitam de colares, braceletes e búzios e alastram pelo ar o suave perfume da alfazema.

Vestidos de orgulho e na paz de oxalá, vão se juntando e ocupando cada espaço daquele chão cheio de história. As obrigações com os orixás já foram cumpridas. Forma-se a roda: é hora de despachar exu, de convidá-lo pra folia. Exu gosta de festa, é o dono da rua, abre os caminhos e pede passagem. Agô! Laroiê!

Uma revoada de pombos anuncia: “Olha o Gandhy aê!” O agogô dá o tom, e ao som do ijexá segue o mais grandioso cortejo do carnaval da Bahia. Como é lindo. Mas os Filhos de Gandhy têm compromissos sociais e religiosos, são afilhados de Mãe Menininha do Gantois, protegidos de ogum e louvam na avenida todos os orixás e encantados. Afoxé é o candomblé nas ruas, é visibilidade e exaltação às tradições herdadas dos povos africanos e preservadas nos terreiros. Afoxé é resistência, como comprova a própria história do Gandhy.

“Do Cais do Porto para o Mundo”. O tema de 2018 remete à origem do afoxé, fundado por estivadores de Salvador em 18 de fevereiro de 1949. A cor branca, mesclada com o azul das contas e adereços, remete a Oxoguiã, a face jovem e guerreira de oxalá, o grande orixá da criação, senhor da paz.

Naquele período pós-guerra, chegavam de além-mar as informações sobre o líder indiano Mahatma Gandhi e suas estratégias revolucionárias de desobedecer para pacificar. Esse princípio da não-violência coadunava-se com as características de oxalá. Então, Gandhi emprestou seu nome àquele que se tornaria o maior afoxé do Brasil. Para não correr o risco de represálias pelo uso do nome, trocou-se a letra “i” pelo “y”.

“Um sol derramado, um céu prateado, um mar de estrelas”. Realmente, nada se compara a esse brilho. Pois lhes digo que qualquer um é lindo quando se veste de Gandhy. Não se trata de uma fantasia, é um símbolo de dignidade e nobreza. São trajes que nos dão ares de divindade, que nos fazem entender por que na religião dos orixás o sagrado nasce nas ruas, nas encruzilhadas e em cada indivíduo.

Ser Gandhy é entender a história de luta e resistência do negro no Brasil. A mais bela tradução, eternizada na voz da saudosa Clara Nunes, “revela a leveza de um povo sofrido, de rara beleza, que vive cantando profunda grandeza”.

Mesmo num carnaval extremamente mercantilizado como o de Salvador, o Gandhy segue fiel às tradições, apesar de também ter feito algumas concessões, tornando-se um dos “blocos” mais procurados por turistas, sobretudo os mais jovens, que popularizaram a troca dos colares por beijos. Mas “a força da grana que ergue e destrói coisas belas” não conseguiu apagar o brilho dos Filhos de Gandhy, que arrasta milhares de foliões pelas ruas da cidade, boa parte iniciada ou simpatizante do candomblé.

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A grande maioria das músicas que embalam e animam os desfiles são inspiradas nos cânticos dos terreiros. Muitas vezes, as próprias cantigas dos orixás são entoadas com pequenas variações melódicas ou nas letras. E embora seja carnaval, todos cantam com emoção e fé. Talvez aí resida a grande magia do Gandhy. Quando o “tapete branco da paz” toma as ruas, o alá de oxalá parece estender-se por toda a cidade da Bahia. É lindo.

Nada se compara, no entanto, à emoção de ser um deles, de se deixar conduzir na levada do agogô. Entregar a mente e soltar o corpo. Só quem viveu pode dizer, e digo: a cada ano é um sentimento diferente.

Os versos de Gilberto Gil convidam:

Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré

Todo o pessoal

Manda descer pra ver

Filhos de Gandhi

Iansã, Iemanjá, chama Xangô

Oxóssi também

Manda descer pra ver

Filhos de Gandhi

Não creio que os orixás se contentem em ver. Eles dançam, brincam, cantam. Estão nos corpos suados, sagrados, de seus filhos, purificando com essência de alfazema a alma da Bahia e do mundo. Ajayô.

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