Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

O que temes, oh, ciência?

Eu sou cientista, eu acredito na ciência, mas não acredito que a ciência possa sair dando opinião sobre o que não testou

Ilê Opô Afonjá, na Bahia, é um dos terreiros de Candomblé mais tradicionais do Brasil. Foto: Amanda Oliveira/GOVBA
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Eu confesso que fiquei bem intrigado com um texto panfletário e profético publicado, recentemente, no jornal O Globo, no blog A hora da Ciência com o título “Religião não é medicina!” Todo mundo sabe que religião não é medicina e que medicina não é religião, penso eu. Se não sabem, deveriam.

Bom, preciso dizer, “para ser neutro”, que a discussão é pertinente. Mas a escolha lexical e o tom do texto, nem tanto.

O texto é panfletário porque se quer colocar em um território neutro e bem-intencionado, mas não o é. Pelo menos, neste assunto, não o é. Pelo menos para o corpo-território negro terreiro, não o é.

O tom e o caminho semântico adotados não me surpreendem. E isso não tem nada a ver com a ciência, tem a ver com lugar ocupado pelo enunciador e com uma formação colonial que ignora saberes tradicionais negros e dos povos originários no Brasil. Não é raro que se leia o mundo da sua própria imagem refletida no espelho, ignorando sombras, o que está no entorno e até a própria luz que ilumina o espelho.

Entretanto, como cientista da linguagem, preciso dizer: não existe discurso neutro. Todo discurso possui intenção, tempo, espaço e desejo de manipular o interlocutor, ou seja, convencê-lo. Somos produtores e produtos dos discursos que produzimos. Lição número um da ciência linguística: escolhemos os significantes no paradigma linguístico de acordo com as nossas intenções. É a força semântica que conduz as escolhas.

Veja bem, este texto, por exemplo, quer desfazer (pré-)conceitos externados no texto do blog em questão, cujas ideias se colocam contra os saberes ancestrais afro diaspóricos.

Eu gostaria de saber, uma vez que a enunciação emerge de um território científico: quantos terreiros quem escreveu o texto frequentou? Com quantos guardiões dos saberes ancestrais – pais e mães de santo, o enunciador conversou? De quantos pretos-velhos e caboclos a opinião emerge?

Não ignoro o fato de que o texto destaca uma experiência promissora nesta conexão institucional de Estado/religião. Nós também fizemos isso em nossos terreiros e seguimos todas as orientações de cientistas sérios: fechamos os terreiros durante determinado período, fizemos atendimentos on-line e fomentamos à vacinação contra a covid-19. Por que alguém precisaria buscar uma experiência semelhante no continente africano quando isso aconteceu aqui no nosso país?

Há um provérbio dos sábios griots do Benin que diz: “somos seres espirituais experimento a materialidade”. Muitas culturas acreditam nisso. Devemos matar estas pessoas em uma câmara de gás por conta de suas crenças?

Eu sou cientista, acredito na ciência. Mas não acredito que a ciência possa sair dando opinião sobre o que não testou, sobre fenômenos não observados com regularidade, sobre algo que não foi deslocado da dimensão empírica e de senso-comum. Pode menos ainda fomentar racismo e exclusão. É isso que fazem os negacionistas, quando, “aligeiradamente”, para dizer o mínimo, transformam opinião em dogmas.

As pessoas que possuem legitimidade discursiva precisam ser mais cautelosas. As vozes, se se querem científicas, precisam ser mais cuidadosas. Desse modo, não podem sair destruindo tudo e, menos ainda, sem apresentar soluções.

Talvez, do alto de um castelo – ops, laboratório, de uma formação tida como “exemplar” e da riqueza capitalista, algumas pessoas privilegiadas e escolhidas pelo sistema não precisem de PICS – Práticas Integrativas e Complementares que, como qualquer cidadão comum bem sabe, são tratamentos que utilizam recursos terapêuticos baseados em conhecimentos tradicionais, para prevenção, e não para a cura, de diversas doenças como depressão e hipertensão.

De acordo com as resoluções do ministério da saúde, em alguns casos, também podem ser usadas como tratamentos paliativos em algumas doenças crônicas. Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece, de forma integral e gratuita, 29 procedimentos de Práticas Integrativas e Complementares (PICS) à população.

Toda a polêmica em torno do corpo-território negro terreiro tem se dado por conta do item 46 listado na Resolução nº 715, de 20 de julho de 2023, do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

De acordo com Dr. Hédio Silva Jr., uma das principais referências jurídicas do Brasil no combate ao racismo religioso: “a resolução é uma recomendação do conselho. Ela não implica parcerias, repasse de recursos. A resolução reconhece estes saberes tradicionais que já são legalmente protegidos pela bioética.”

Nós, povos e comunidades tradicionais de terreiro não reivindicamos reconhecimento, nós já o tínhamos. Um reconhecimento ancestral e, sobretudo, reconhecimento social que não está expresso nas pesquisas por conta do racismo que sempre silencia o nosso lugar e a nossa importância no mundo “do povo”.

Nós acreditamos não só na importância da ciência, mas também no poder do afeto, no poder da família estendida, no poder de uma amizade, no poder da oração, no poder de uma conexão espiritual, no poder de um abraço, no poder de um banho de folha, no poder da escuta generosa, no poder de um pai e de uma mãe carinhosos, no poder das danças circulares, no poder de ofertar à mente a possibilidade de se pensar expandida, mas é um pouco destas práticas que ofertamos no terreiro.

Não se pode desconsiderar quanto tempo uma pessoa “do povo” tem de esperar para uma cirurgia eletiva no SUS? Dezesseis estados e o Distrito Federal informaram ao Ministério da Saúde que mais de 566 mil pessoas estão na fila do Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização de cirurgias eletivas. O número aparece no relatório mais recente da pasta sobre o andamento de um novo programa do governo federal, que pretende repassar recursos para reduzir a espera por cirurgias, exames e consultas na rede pública de saúde.

Uma cirurgia eletiva, normalmente, assim o é classificada porque não é concebida como urgente, mas a senhora sabe a quão ansiosa fica uma pessoa doente?

Será que as pessoas sabem que, a fim de não agravar a doença, onde a pessoa doente poderá encontrar conforto e tranquilidade para esperar? Eu respondo: no terreiro. No colo e nas vozes de pretos-velhos, caboclos, memórias existências encantadas.

Nós nunca, em tempo algum, reivindicamos o lugar da ciência. Não advogamos por sua exclusão, substituição ou invalidação

Não foram poucas as vezes em que ouvi da boca de pretos-velhos e caboclos – memórias existências de tempos imemoriais que, sem máquina do tempo, atravessam tempo e espaço para trazer orientação aos aflitos: “Filho, procure o homem da capa branca!”. O homem da capa branca é o médico.

Entendo que a ciência tenha feito uma verdadeira cruzada em favor da vacinação e pelo desempenho da vacinação contra a Covid-19; isso foi muito importante, mas não estou compreendendo o que leva uma pessoa a reduzir-se e colocar-se no lugar de “paladina da ciência” contra a parceria ministério da saúde/ “religião”.

Uso aspas aqui porque eu nunca a vi tal manifestação expressa no texto contra as religiões que assumida e declaradamente oferecem curas instantâneas: “curamos a depressão em três dias”, “curamos seu filho gay”, “curamos a covid com o uso desta água ou deste óleo”.

Ao final do seu texto, temos uma profecia – considerando o “lócus da enunciação”, algo irônico, para dizer o mínimo: “É possível imaginar dois desfechos: um cenário onde um ministério comprometido com as evidências científicas submete as PICs para avaliação científica, e cria um programa para incluir líderes religiosos e locais de culto como parceiros para facilitar o acesso da população a uma saúde pública baseada em medicina de verdade; outro, o cenário, populista, onde um ministério feito mais de slogans fáceis do que de substância, preocupado em agradar lobistas e nichos eleitorais, mantém as PICs, ignora a Conitec e abre as portas para incluir não só ritos de matriz africana, mas de todos os tipos e origens, como “tecnologias” de saúde. Quem acha absurdo a ozonioterapia no SUS é porque ainda não viu o exorcismo.”

O problema aqui é que se constrói um corredor isotópico quando se coloca nos dois últimos trechos “ritos de matriz africana” e “exorcismo”; isso se tornou o destaque de todo o texto e conduziu até a escolha da imagem que originalmente ilustrava o texto, o que não é um problema exatamente de quem escreve.

Depois do texto enunciado, ele ganha vida própria de acordo com o repertório do leitor. O problema é que, assim como se fala sobre nós sem repertório acurado e sem vivência, os leitores o farão também.

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