Diálogos da Fé

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O que é o sionismo cristão e por que ele alimenta a direita no Brasil

Nesta cosmologia, não há lugar para judeus seculares, para judeus de esquerda, para judeus liberais. Também não cabem os cristãos palestinos

Bolsonaro e Benjamin Netanyahu visitam o Muro das Lamentações. MENAHEM KAHANA / AFP
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O conflito bélico entre a ala militar do partido islâmico palestino Hamas e o Estado de Israel levanta muitas discussões. Entre elas, a ampla afinidade de lideranças cristãs, em especial evangélicas, a uma posição incondicional pró-Israel (e anti-Palestina).

Trata-se de uma expressão do que tem sido chamada de “sionismo cristão”, um elemento que não é novo no Brasil, mas que recentemente tem se evidenciado com mais força no debate público.

O sionismo é um movimento político, surgido no final do século 19, que defende a formação de um Estado próprio para os judeus. O alvo é a terra que havia sido habitada por este povo até o século 3 da era cristã. Desde então, há uma história de deslocamentos forçados, diásporas, perseguições.

Durante todo o século 20, o sionismo se fortaleceu por meio da compra de terras e do apoio ao projeto judaico de colonização da região pelo Império Britânico, que lá exercia domínio político e militar. A cruel perseguição do nazismo ao povo judeu e as consequências da Segunda Guerra Mundial tornaram viável a fundação do Estado de Israel, em 1948.

Deste tempo explodiram novos conflitos, na medida em que acordos de demarcações territoriais foram desrespeitados por Israel, por meio de invasões, com abusos e muita violência. Movimentos organizados palestinos passaram a reagir a tais ações, também por meios brutais.

O sionismo cristão é um posicionamento religioso que toma a forma de discursos verbais e não-verbais e de atuações políticas em apoio ao fortalecimento do Estado de Israel e à ampliação do território que ocupa. O sionismo cristão já existia no Brasil mas passou a ganhar força neste tempo recente de intensificação de uma direita religiosa, em especial, durante o governo de Jair Bolsonaro.

A política externa brasileira, historicamente, havia buscado equilíbrio em relação ao conflito entre israelenses e palestinos, e respeito aos tratados internacionais. Porém, Bolsonaro promoveu uma aproximação sem precedentes com Israel, motivado, em especial, pela aliança que estabeleceu com grupos evangélicos ultraconservadores.

Em 2016, Bolsonaro, um católico em busca do voto evangélico, havia se transferido do PP para o PSC e foi batizado nas águas do Rio Jordão, em Israel, pelo presidente do partido Pastor Everaldo. Muita gente acreditou que, nesse momento, ele tinha se tornado evangélico, mas parece ter sido apenas o desenho da promessa de campanha para conquistar o voto religioso fazendo uso do imaginário pró-Israel.

Que imaginário é este? De um modo geral, na compreensão mais tradicional dos evangélicos no Brasil, baseada na leitura literalista da Bíblia, Israel é o povo escolhido de Deus, um povo especial. É a interpretação desta leitura que se dá de forma diferenciada. Uns grupos leem que, com a vinda de Jesus, o Antigo Testamento da Bíblia precisa ser relido à luz dos evangelhos e a compreensão sobre o povo escolhido se amplia e este passa a ser os seguidores de Jesus, a Igreja. Outros leem as profecias bíblicas de que a restauração do mundo por Deus se dará quando Israel estiver plenamente assentado em sua terra e compreendem que a formação do Estado de Israel em 1948 foi o início da realização delas. Portanto, quando o povo eleito tomar plenamente toda a terra que lhe pertence, reconhecerá nela, finalmente, Jesus como o Messias, Deus restaurará o mundo e salvará seus seguidores.

Um ponto-chave é que há uma carga ideológica fortíssima nesta segunda concepção. É uma leitura descontextualizada que propaga que o Israel reconstituído em 1948 é o mesmo Israel da Bíblia. O povo palestino e os demais povos daquele território que não saíram de lá em diáspora, e também pertencem à tradição narrada na Bíblia são desprezados. Desconsidera-se, entre outros pontos, ainda as misturas provocadas pelas transformações geopolíticas em tantos séculos: quem ficou e quem saiu em diáspora passou por mudanças.

Com isso, estes grupos cristãos, equivocadamente, credenciam o atual Estado de Israel como se este fora o Israel da Bíblia. Apoiam incondicionalmente suas ações e políticas, ainda que sejam consideradas práticas genocidas em relação aos palestinos, alvo maior da conquista territorial em jogo.

Nesta perspectiva teológica-ideológica emergem as práticas judaizantes no Cristianismo evangélico que se configuram um apego maior à leitura do Antigo Testamento, onde estão os relatos e ensinamentos religiosos do Israel bíblico. Isto resulta na diminuição da figura de Jesus, de seus princípios de despojamento e misericórdia e do símbolo da cruz. Em oposição, passa a predominar a figura do rei Davi, fundador de Jerusalém, suas operações milicianas de ocupação de terras, símbolos da monarquia, como trono, domínio, riquezas, a imagem de Deus como Senhor dos Exércitos, o Templo de Salomão, entre outros.

Esta simbologia se manifesta não só na pregação religiosa e nas canções gospel, mas também na linguagem visual, com bandeiras de Israel, que decoram altares, e ícones como a arca da aliança. Este discurso materializa, em especial, as conhecidas Teologia do Domínio e da Prosperidade.

Tudo isto é alimentado com inúmeras excursões religiosas à chamada “Terra Santa”, território de peregrinação cristã, que inclui Jerusalém e alguns sítios na Palestina, como a destacada Belém.

Nesta construção, o mundo árabe ou a religião islâmica, incluindo a Palestina, são apresentados como as maiores ameaças ao Povo de Deus. Já os judeus e Israel são um dos principais símbolos dos cristãos ultraconservadores. Israel é visto como um muro, uma barreira defensiva contra ameaças do Oriente (uma conspiração islâmica-comunista) para conquistar o Ocidente. Propaga-se, como explica o professor Michel Gherman, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, um judeu e um Israel imaginários. Este judeu imaginário é religioso, conservador, de direita. O Israel imaginário é visto como representante de tais valores.

Nesta cosmologia de direita, não há lugar para judeus seculares, para judeus de esquerda, para judeus liberais. Um judeu secular ou um judeu ateu não é considerado um verdadeiro judeu. A direita cristã, portanto, cria o seu verdadeiro judeu, construindo uma identidade judaica a partir de uma agenda conservadora específica baseada em leituras evangélicas, especialmente pentecostais.

Nesta lógica, também não cabem os cristãos palestinos. Sua existência não é sequer considerada, muito menos uma atitude solidária diante do massacre que vivenciam há décadas e das atuais crueldades que lhes têm sido impostas por Israel em reação aos ataques extremistas do Hamas.

Este é um processo ideológico, desinformativo, que acaba não sendo restrito ao ambiente religioso. Ele se agrava, em tempos como os atuais, com um conflito armado em curso, com ampla colaboração da cobertura noticiosa seletiva pró-sionismo anti-palestinos.

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