Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

O que deveríamos observar antes de escolher um terreiro?

Um terreiro é feito de pessoas humanas com suas histórias, com suas formações ideológicas, com suas crenças e valores

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Na condição de sacerdote de terreiro, iniciado no culto aos Orixás em um Candomblé Queto e com uma vivência de umbanda desde o meu nascimento por conta de ser filho de uma “mãe de santo”; na condição de ativista, professor, escritor e pensador negro contra colonial, eu recebo muitas questões tanto sobre as origens da cultura de terreiro quanto de como ingressar e participar como “filho de santo” – expressão utilizada pelos membros das religiões de matrizes africanas e/ou indígenas, de um terreiro.

No Brasil, a palavra terreiro designa as chamadas religiões afro-brasileiras que recebem diferentes nomes de acordo com a origem geográfica, histórica, linguagem, filosofia e com o modelo dos rituais adotados e que sempre remetem às origens dos negros escravizados. No Nordeste, temos o tambor-de-mina maranhense e o terecó, o xangô de Pernambuco, o nagô, o nagô-egbá e o candomblé da Bahia com suas diferentes nações: queto, jeje, angola, efom e ijexá; na região sudeste – Rio de Janeiro e São Paulo, temos a presença de diferentes umbandas e o candomblé e, no Sul, temos a predominância do batuque também com suas diferentes nações. No norte e nordeste do Brasil, temos também a jurema sagrada.

Independente da origem e do modo como o sistema de crenças está organizado, o terreiro, este território ancestral de resistência, tem crescido muito e temos assistido à expansão das religiões afro-indígenas no Brasil.

Em alguma medida, até como resposta ao racismo religioso, temos assistido no Brasil à fundação de novos terreiros de umbanda, de candomblé e tradições afins.

A palavra terreiro tenta dar conta de uma diversidade de práticas religiosas que emergem como um legado ancestral negro deixado por cerca de cinco milhões de escravizados que conseguiram, mesmo em meio à perseguição, à violência extrema, à criminalização de suas práticas culturais, ressignificar a própria cultura e seu sistema de crenças em meio a um ambiente histórico hostil e extremamente violento.

Um outro fator que pode explicar essa expansão diz respeito ao adoecimento emocional/ espiritual de grande parte dos brasileiros.

As religiões tidas como hegemônicas e tradicionais, na maioria das vezes, perdidas e/ou encarceradas em dogmas, verdades absolutas, ideias fixas e até em discursos de ódio contra outras religiões não têm ofertado cura, mobilidade social, expansão e, não raro, têm atuado como verdadeiras prisões de almas e mentes.

Nesse sentido, o que eu tenho chamado de terra árida tem levado uma parte da população a buscar mensagens de conforto, suporte, acalanto, respostas às inquietações existenciais e até maneiras de como lidar com seus filhos nos saberes ancestrais de terreiro, ou seja, tanto nos saberes ancestrais dos orixás, voduns e inquices quanto na voz dos espíritos encantados de “pretos-velhos” – memórias existenciais de negros escravizados ou da pré-colonização,  memórias existenciais de homens e mulheres livres e à frente de seus tempos chamados de “Exus” e “Pombagiras”,  espíritos encantados dos chamados “Boiadeiros” – tocadores de boiadas e muitas outras memórias existenciais/espíritos encantados que, sem máquina do tempo, atravessam a história do Brasil e do continente africano para nos trazer orientações e vivências de tempos imemoriais.

Como fonte de boas palavras, de orientações confortantes, carinho espiritual, respostas ancestrais milenares, o terreiro tem atraído cada vez mais pessoas em busca de si mesmas e de uma ancestralidade/ espiritualidade perdida e/ou negada.

Mas o que esperar de um terreiro? O que buscar em um terreiro? Como respeitar o terreiro desde o momento da busca? O que devemos observar e até compreender antes de ter um terreiro para chamar de nossa família?

Não se trata de avaliar o terreiro, não se trata de verdade absoluta; por favor, não entendam essas dimensões como critérios de julgamento e avaliação do terreiro.

Um terreiro é feito de pessoas humanas com suas histórias, com suas formações ideológicas, com suas crenças e valores e, nesse sentido, até para que não desrespeitem o terreiro, colocando-o na posição de experimental e descartável, é importante que antes de ingressar nos sintamos em casa, reencontrando nossa casa, voltando para a nossa casa ancestral e para a nossa família.

Por isso, eu separei aqui duas principais dimensões e características da dinâmica do terreiro que talvez possa lhe ajudar na escolha do seu terreiro. Penso que observar estas características pode evitar, a longo prazo, que se decepcione com o terreiro escolhido.

Dimensão da autoimagem: como o terreiro se pensa e se percebe no mundo?

Como a liderança e os membros do terreiro pensam e percebem o próprio terreiro? Vislumbram a própria pertença de terreiro e a existência do terreiro em suas vidas como um fardo, como uma maldição, como uma herança imposta, como um peso, como uma missão dolorosa da qual não podem fugir ou como uma benção, como um presente ancestral, como um privilégio?

Penso que a vivência de terreiro será mais leve, mais prazerosa e menos opressora se a liderança e sua comunidade entenderem que é uma honra ser de terreiro; que o farão com alegria e sempre em festa.

Se a comunidade e a liderança de terreiro vislumbram a própria pertença como imposta e até uma maldição ancestral, muito provavelmente, haverá a reprodução de estruturas de senzala e de coação muito presentes nas relações sociais dos séculos XVIII – XIX.

Dimensão política do terreiro

Obviamente, nenhum terreiro está imune aos impactos das ideias políticas, mesmo que negue a sua face política e que advogue que política e religião não deveriam se misturar, é preciso observar a dimensão política do terreiro: mais ou menos conservador, mais ou menos racista, mais ou menos LGBTQIAP+fóbico, mais ou menos machista e misógino. O terreiro não está imune aos impactos do colonialismo e às forças de uma dimensão conservadora da sociedade.

O terreiro é – por conta de sua origem – um espaço político, subversivo e de resistência negra. É preciso observar se o terreiro conhece a sua história e aceita isso. A origem do terreiro e a sua história remete a territórios quilombolas e indígenas de acolhimento, de proteção dos marginalizados e pela luta contra a escravização e pela liberdade. O terreiro é por natureza território de luta pela igualdade social.

Penso que estas duas dimensões são pontos importantes de partida para a escolha de um terreiro. As pessoas pensam que terreiro é uma massa uniforme e que todos são iguais, mas não são. Espero que fiquem por aqui para que possamos continuar desfazendo ideias preconceituosas sobre o terreiro. Ele é grande, ele é gigante e é diverso.

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