Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

No Dia da Bíblia, é preciso falar sobre como ela tem sido maltratada

Há quem prefira um deus autoritário, dominador, general de exércitos, sustentador de torturadores e milicianos… Não é aquele mostrado por Jesus

(Foto: Carolina Antunes/PR)
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O segundo domingo de dezembro é o dia em que comunidades evangélicas, tradicionalmente, celebram o Dia da Bíblia. Desde 2001, a data integra o calendário cívico nacional, resultado da Lei n. 10.335 aprovada naquele ano, de autoria do então deputado federal evangélico Eber Silva (PST-RJ), pastor da Igreja Batista. 

Descartemos, por ora, a importante discussão sobre a aprovação de uma lei como esta por um Congresso Nacional regido por uma Constituição Federal que afirma ser o Estado laico. Vamos nos deter no significado da Bíblia, historicamente homenageada, em dezembro, nos espaços evangélicos, em contraste com os maus tratos que ela recebeu e os abusos que têm sido cometidos em nome dela nos últimos anos.

A Bíblia é um conjunto de escritos com belíssimas narrativas, ensinamentos, leis sociais, poesias, produzidos por pessoas e comunidades de diferentes origens (a maioria delas anônimas e muito simples), em distintas épocas e locais. É uma variedade de abordagens que tem como tema a ação amorosa e libertadora de Deus na história, como Criador do mundo, e sua revelação significativa: a pessoa de Jesus. 

Uma das características mais interessantes dos textos bíblicos é que eles não descartam as contradições humanas: estão todas ali nas situações mais distintas, registradas a partir de diferentes formas de interpretar a fé e a vontade divina. Há quem critique a existência de contradições na Bíblia, mas aí está a beleza de seu conteúdo. A crueza das contradições humanas e a consequente tentativa de manipular Deus estão lá. 

Por exemplo: os que desprezavam estrangeiros e acreditavam que o povo de Israel e de Judá não poderia se ‘misturar’ escreveram textos como o livro de Neemias. Já quem achava que não há distinção para Deus, que a todos vê e ama igualmente, escreveu de forma bem diferente – como mostram os livros de Rute e de Jonas. 

Toda e qualquer afirmação que faça uso da Bíblia para defender armas ou para justificar golpes de Estado é blasfêmia

Outro exemplo são as duas formas de narrar a história da Criação, contidas no mesmo livro de Gênesis. Uma coloca o ser humano como centro da Criação. A outra, como coadjuvante. 

É preciso, portanto, fazer uma leitura responsável dos textos bíblicos, coerente com estes contextos. Entender quem escreveu, quando, por que, e daí buscar a mensagem que pode ser tomada no nosso tempo e lugar.

Diante de toda esta diversidade de perspectivas, interpretações e gêneros, porém, há um ponto comum: o amor de Deus pelo mundo, e a revelação de sua vontade nas palavras e ações dos profetas, realizadas na pessoa de Jesus. Quando há dúvida entre um ou outro texto, cristãos coerentes sabem que são as palavras e atitudes atribuídas aos profetas e a Jesus os pontos centrais de orientação para se viver a fé de forma digna e comprometida. 

A pauta do amor de Deus pelo mundo, encarnado em Jesus, é justiça, amor, misericórdia, perdão, reconciliação e redenção. É a preferência aos mais fracos, os subalternizados, chamadas nos Evangelhos de “pequeninos”: os pobres, as crianças, as mulheres, os desprezados, os presos, os estrangeiros e todos que são, de alguma forma, excluídos da sociedade por sua condição social, física ou sexual. A ética do amor contida na Bíblia é aquela que rechaça e enfrenta a violência, a desigualdade, a exclusão de pessoas. 

Porém os textos da Bíblia também registram que Deus sempre foi usado para justificar ações políticas. Por exemplo, quando uma parcela do povo de Israel decidiu deixar o regime tribal e estabelecer uma monarquia, houve quem dissesse que esta nova articulação era “a” vontade de Deus e houve quem fosse contra, também em nome de Deus. As duas posições estão contidas no mesmo trecho da Bíblia e saem da boca do mesmo líder religioso. 

Ocorre que a monarquia foi instalada e deu tudo errado. Houve muita opressão, corrupção, dominação e controle por outros povos. E novos relatos registravam que Deus agia para apoiar e corrigir o rumo dos reis, ao mesmo tempo em que outros textos indicavam a condenação do regime por este mesmo Deus. Estas duas correntes percorrem todo o Antigo Testamento da Bíblia.

O Novo Testamento passa a estabelecer um parâmetro para cristãos e cristãs. A monarquia estava a serviço do Império Romano, oprimindo, explorando, perseguindo, apesar de ser interpretada, por líderes religiosos, como vontade de Deus. Jesus aparece para realçar as palavras dos profetas questionadores do regime, para apregoar um governo, de fato, coerente com o desejo de Deus (Reino de Deus) que, além de comida, bebida, saúde e salário justo (tudo contido nas histórias que ele contava), é vida em comunidade, partilha, sem que nada falte para ninguém. Por isso Jesus foi preso, torturado e morto pelos governantes que diziam agir em nome de deus.

E é neste ponto que é preciso reconhecer que toda e qualquer afirmação que venha de políticos, de líderes religiosos e de pessoas comuns que façam uso da Bíblia para defender armas, a eliminação de inimigos ou para justificar golpes de Estado são blasfêmia. São também diabólicos os argumentos de que “Deus está no controle”, que “Deus está acima de todos” e que mortes por pandemias ou outras tragédias e a destruição da Criação são justificadas pois “Deus castiga”. 

Nos últimos anos, vivemos no Brasil campanhas eleitorais e sob um governo que, com seus apoiadores religiosos, maltrataram a Bíblia, usando seus textos para atingir seus objetivos políticos e econômicos. Além do abuso ideológico descrito acima, construiu-se, com textos bíblicos, a ideia de que o presidente da República, que ocupou o poder nos últimos quatro anos, era um escolhido de deus e deveria obter outro mandato.

Do conjunto fascinante de textos da Bíblia, aprendemos que é fácil tentar fazer de Deus a imagem e semelhança de pessoas e grupos. No entanto, Deus é amor, é maior e mais do que tudo o que somos e temos. Por isso, é incompatível com muitos projetos humanos. Há quem prefira um deus autoritário, dominador, general de exércitos, sustentador de torturadores e milicianos… Este deus pode ser seguido e anunciado por políticos e seus apoiadores, mas não é aquele mostrado por Jesus. 

Este tempo de Advento, as quatro semanas de espera da celebração do Natal, que inclui o Dia da Bíblia, pode servir para refazer caminhos (conversão), superar equívocos e, de quebra, resgatar este livro tão bonito e significativo.

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