Diálogos da Fé

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Mais punição, mais armas e menos direitos para minorias: a marca dos 6 meses na Câmara

Uma parte significativa dos projetos tratam da instituição e do aumento de penas para crimes ou da redução de benefícios penais previstos em lei, além de abordarem casos que ampliam o direito ao porte de armas

Foto da Fachada do Congresso Nacional, em Brasília. Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil
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por Livia Reis, Matheus Pestana, Laryssa Owsiany e Magali Cunha

Um novo projeto do Núcleo de Religião e Política do Instituto de Estudos da Religião, o ISER, atua no monitoramento de Projetos de Lei da Câmara dos Deputados (PLs), na 57ª Legislatura. O objetivo é compreender como os deputados federais se mobilizam em relação à produção legislativa em temas relevantes para o trabalho do ISER, como religião, gênero, raça, família, entre outros.

Os primeiros dados foram levantados a partir de metodologia que responde ao foco do monitoramento. Neste artigo, apresentamos um extrato dos primeiros resultados referentes ao primeiro semestre do primeiro ano da legislatura em curso, 2023.

Neste período, o sistema de monitoramento identificou 3.256 PLs submetidos por parlamentares. Deste total, 1.073 foram classificados como pauta de interesse do ISER para identificar conflitos, disputas e narrativas sobre moralidades e temas relevantes que tangenciam valores, comunidades ou atores religiosos (o que excluiu projetos com foco em outras pautas, como execução orçamentária, por exemplo). Na primeira etapa, foi possível identificar 15 categorias analíticas iniciais para enquadrar e analisar estes PLs, uma vez que novas categorias podem surgir no decorrer da legislatura, e este número venha a se tornar maior. 

As 15 categorias centrais: 1) Direitos da Mulher; 2) Crimes e Segurança Pública; 3) Causa animal; 4) Ameaça ao Estado Democrático de Direito; 5) Imigração; 6) Educação; 7) Política de drogas; 8) Direitos da Criança e do Adolescente; 9) Regulação de mídias; 10) Família; 11) Direitos dos povos indígenas; 12)Direitos Humanos; 13) Calendários oficiais, patrimonialização e homenagens; 14) Religião 15)Direitos Sexuais e Reprodutivos.

Em nossos últimos trabalhos, por exemplo, identificamos a proximidade de candidaturas religiosas conservadoras com policiais e vigilantes, a centralidade da categoria “mulher” nas pautas de campanha de candidaturas com identidade religiosa e a consolidação da causa animal como pauta de campanha no campo conservador. 

Muitas dessas pautas de campanha, como se vê neste levantamento, já se converteram em PLs, mas a maioria dos projetos respondem a fatos sociais relevantes na sociedade, como foi possível verificar nos mais de 15 projetos que preveem acolhimento para mulheres vítimas de violência sexual em boates e casas noturnas – uma resposta ao ocorrido com o jogador de futebol Daniel Alves, acusado de estupro nessa situação -, dos ataques às escolas e da questão indígena, que ganhou relevância após o caso do genocídio do povo yanomami no início de 2023.

Também há um grande número de PLs, que buscam sustar os efeitos de portarias e decretos do Executivo, a maior parte deles protocolados pela oposição ao governo, sobretudo aqueles que versam sobre armas e direitos de minorias, com foco em temáticas sobre raça e gênero. 

Uma análise inicial de todos os projetos de lei apresentados neste período pode ser acessada aqui. De maneira geral, pode-se dizer que uma parte significativa dos projetos tratam da instituição e do aumento de penas para crimes ou da redução de benefícios penais previstos em lei, além de abordarem casos que ampliam o direito ao porte de armas. Estes projetos são majoritariamente propostos por partidos de centro e de direita. Comparativamente, apenas uma pequena parte dos projetos investe em propostas educacionais ou de ressocialização de pessoas que tenham cometido crimes. 

No gráfico abaixo, é possível verificar o número de projetos relacionados a cada uma das categorias de análise.

Neste artigo, destacamos o tema dos direitos de gênero, destacado no processo eleitoral, como mencionado acima. O maior número de PLs apresentados em 2023 versa sobre direitos da mulher, temática quase sempre conectada com as violências de gênero, como a doméstica e o abuso sexual, por exemplo, mas também com propostas sobre paridade de gênero, saúde pública e masculinidades. 

Os 186 projetos aqui elencados têm a categoria “mulher” como foco da proposta de lei. Por ser uma categoria central para o campo religioso, entendemos que isolá-la analiticamente nos ajuda a mapear os movimentos feitos entre os atores deste e de outros campos neste debate fundamental. 

Note-se, entretanto, que a categoria “mulher” é, na maior parte das vezes, utilizada de maneira restritiva e no singular, isto é, incluindo apenas mulheres cis, inseridas em um núcleo familiar heteronormativo, ainda que com exceções. Alguns projetos falam abertamente sobre mulheres transexuais e travestis, outros de pessoas em situação de violência doméstica, pessoas com útero e todas as mulheres. O projeto do deputado católico Miguel Lombardi (PL/SP), por exemplo, sobre violência contra a mulher, cita nominalmente pessoas transgênero. As justificativas de cada projeto, entretanto, tratam majoritariamente das experiências de mulheres.

Os projetos classificados nesta categoria, 136, foram, em sua maioria, propostos por deputados ligados a partidos de centro e de direita (101) e preveem o aumento de penas ou tipificação de crimes relacionados a casos de violência doméstica e sexual contra mulheres, ou, ainda, o aumento de situações que autorizam o porte de armas para mulheres. 

Apenas dois deles, por sua vez, previam expressamente educação sexual e de gênero para homens que cometeram violência contra mulheres em sua ementa. O “empreendedorismo feminino” também aparece como pauta sobre direito de mulheres, somando quatro projetos relacionados ao tema. Além deles há outros que preveem facilitação de crédito e acessos a financiamentos públicos por mulheres vítimas de violência.

Entre PLs que tematizam a violência doméstica, há aqueles direcionados a estabelecer novas penas para homens condenados pela Lei Maria da Penha, como, por exemplo, as que proíbem acesso a cargos públicos. Mudanças de leis penais, trabalhistas e administrativas para pessoas condenadas por violência contra a mulher existem entre as propostas, além daquelas que tipificam o crime de misoginia.

Alguns dos PLs direcionados a mulheres vítimas de violência doméstica incluem em seu rol, violência sexual contra crianças e adolescentes, mas também descendentes e ascendentes das vitimadas, articulando a discussão com os debates sobre família, infância e direitos dos idosos. 

Há PLs que tematizam questões de saúde pública, como folgas durante o fluxo menstrual, acompanhamento durante consultas médicas para combate a abusos entre outros, e também propostas de equiparação salarial e contra a violência política de gênero. Outra gama de projetos prevê a facilitação de venda de armas de fogo para mulheres, algo que também foi identificado naqueles destinados a professores e profissionais da educação.

Sobre direitos sexuais e reprodutivos 

Esta é uma importante categoria de disputa no campo conservador, extrapolando o campo religioso, e, não por acaso, apenas oito de um total de 53 projetos foram propostos por partidos de esquerda. Os demais estão divididos entre o centro a direita, e tentam, basicamente, dificultar o acesso ao aborto legal, questionar a equiaparação entre mulheres cis e trans, criminalizar os tratamentos hormonais em crianças e adolescentes e coibir o uso de linguagem neutra. Todos os deputados que propuseram projetos nesta área tiveram sua identidade religiosa identificada, sendo católicos, cristãos ou evangélicos.

Facilitação da laqueadura de trompas para mulheres e violência obstétrica foram temas de alguns projetos neste início de legislatura. Os PLs sobre esta temática foram classificados majoritariamente como direitos sexuais e reprodutivos, já que versam sobre liberdade reprodutiva e saúde pública. Apenas um deles foi classificado como relacionado com direitos da mulher, devido à justificativa que equiparava a violência obstétrica à violência doméstica, revelando diferenças de enquadramento.

Muitos PLs tentam obstruir o acesso ao aborto legal, sobretudo em casos de estupro, em reação à Portaria do Ministério da Saúde GM/MS nº 13, de 13 de janeiro de 2023, casos em que tentam manter a exigência de comunicação às autoridades policiais, e também criminalizam a venda de medicamento abortivo Cytotec.

Há uma forte ênfase na proibição de tratamentos hormonais para crianças e adolescentes. O evangélico Kim Kataguiri (União/SP), por exemplo, propõe criminalizar pessoas que instigam, incentivam, influenciam ou permitem a criança ou adolescente a mudar seu gênero biológico e para proibir linguagem neutra no âmbito da educação básica.

Em relação ao uso da linguagem neutra em instituições de ensino, vale ressaltar que os argumentos contrários incluem a defesa da norma culta, inserindo o debate sobre cultura. Há projeto que estabelece medidas protetivas ao direito dos estudantes de aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma culta e orientações legais de ensino. 

Foi identificada proposta que susta os efeitos do Decreto nº 11.430, de 08 de março de 2023, que institui cotas para mulheres trans, travestis e outras possibilidades do gênero feminino em ações de equidade entre mulheres e homens no ambiente de trabalho, sendo portanto, contrária à equiparação de mulheres trans e cis.

A discussão sobre banheiros unissex voltou às midias sociais religiosas devido à portaria que dispõe sobre a utilização de banheiros, dormitórios, vestiários e demais espaços segregados por gênero conforme a identidade de gênero individual, e foi alvo de pedidos de sustação. Esta seria a materialização da ameaça do banheiro unissex que ocupou o centro do período eleitoral em 2022 no campo religioso.

Como informado anteriormente, um dos PLs susta a Portaria GM/MS nº 230, de 7 de março de 2023, que institui o Programa Nacional de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras no Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo  a proposta,  o problema é o conceito de gênero e o ataque à família. 

Depois desse primeiro esforço classificatório, o ISER divulgará mensalmente a atualização do monitoramento, cujos dados estão disponíveis para download e podem ser acessados aqui. 

Livia Reis, doutora em Antropologia, coordenadora da área de Religião e Política do Instituto de Estudos da Religião (ISER)
Matheus Pestana, doutorando em Ciência Política, pesquisador do ISER
Laryssa Owsiany, doutoranda em Ciências Sociais, pesquisadora no ISER.
Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação, pesquisadora do ISER

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