Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Igrejas e ditadura: abusos e novas formas de resistências

A memória das atrocidades cometidas pela ditadura e a resistência são fundamentais para que nunca mais algo tão vil se repita

Comissão de Anistia voltará a analisar casos. Foto: Evandro Teixeira/Instituto Moreira Salles
Apoie Siga-nos no

Por Mônica Souza e Claudio Ribeiro*

Semanas atrás, os jornais divulgaram o resultado de uma pesquisa sobre a avaliação dos primeiros meses do governo Lula. Dentre outras questões, o resultado indica que 44% dos brasileiros veem algum risco de ser instaurado o comunismo no Brasil com a chegada do presidente Lula ao poder. E, se fizermos o recorte com o segmento evangélico, este número cresce, sendo que 57% acreditam haver algum risco, 44% concordam totalmente com essa possibilidade e 13% pensam igualmente, ainda que de forma parcial. Esses dados nos chamam muito a atenção! 

Instigante também é que o mesmo discurso de ameaça comunista permeou as justificativas militares para uma “ação contundente” à época do golpe de Estado no Brasil, que, neste dia 31 de março de 2023, completa 59 anos. E mais: esse imaginário de guerra ao comunismo foi encampado nos meios cristãos, católicos e protestantes, que fez com que o apoio da sociedade civil à ditadura fosse muito expressivo. 

É importante lembrar que no início dos anos 1960 a população brasileira era de cerca de 70 milhões de habitantes, ou seja, aproximadamente um terço da atual, e a população era predominantemente de católicos declarados, e apenas 5% era de evangélicos. Mesmo minoritário no país, este último grupo teve em seu interior forte adesão às aspirações e realizações golpistas dos militares, mas também, ao mesmo tempo, houve quem tenha reagido criticamente, se opondo às barbáries violentas e antidemocráticas que se instauravam no país. Poucos conhecem a trajetória de pastores, lideranças jovens, entre homens e mulheres, que tiveram suas vidas abaladas pelos processos repressivos da época, sendo que alguns sofreram as mais vis torturas, prisões, exílio e até mesmo a morte. 

E se dermos um salto para o período mais recente, de 2019 a 2022? O Brasil tem outra composição – a população estimada é de cerca de 210 milhões, tendo o segmento evangélico alcançado aproximadamente 30% da população brasileira. Agora este grupo é de 70 milhões de pessoas! É fato que teremos um quadro mais preciso com a divulgação do Censo de 2022. Porém, para além dos números, é nítida a presença pública de pessoas e grupos evangélicos nas mais diferentes áreas da sociedade brasileira. 

Neste contexto, o presidente deste período, declarado católico, chega ao governo, amparado por várias frentes ultraconservadoras, incluindo a de evangélicos e católicos fundamentalistas, e constrói sua rede de sustentação política com discurso autoritário, obscurantista, armamentista e conservador em termos de costumes. E o que se viu foi um apoio mais que expressivo do segmento evangélico, sendo que, na sua tentativa de reeleição, quase 70% dos eleitores declarados evangélicos o apoiaram. E não se pode esquecer que outro aspecto de destaque nesse mandato foi a cooptação expressiva de militares para cargos nos diversos escalões do governo. A situação se tornou dramática!

A memória da ditadura militar foi constantemente utilizada no discurso presidencial, tanto para negar ou minimizar os crimes cometidos pelo regime como para enaltecer o suposto desenvolvimento do país no período. Além disso, se homenageou torturadores, como o Coronel Brilhante Ustra, o primeiro militar condenado pelo crime de tortura no período, embora tenha havido recurso em segunda instância. O governo também manteve constante dubiedade no tratamento das possíveis celebrações do dia 31 de março nos quartéis. 

Quem não se lembra das frases do ex-presidente? “O Coronel Ustra, um herói nacional, que evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer”. Ou ainda: “Hoje, 31 de março. O que aconteceu em 31? Nada. A história não registra nenhum presidente da República tendo perdido o seu mandato nesse dia. Por que então a mentira? A quem ela se presta?”

A construção de narrativas ideológicas e falsas foi algo constante no governo anterior, feita com o aparelhamento das instâncias do Estado e em completa desconexão com os resultados apurados na Comissão Nacional da Verdade. Anos antes, como espaço institucional do Estado, e não de grupos específicos, ela apresentou ao país bases muito sólidas de resgate da memória nacional, no tocante ao valor dos direitos humanos e da dignidade da vida.

Sensibilizados com este quadro, vários grupos têm atuado e dedicado os seus melhores esforços para não permitir que o trabalho iniciado com o processo de redemocratização do país, em defesa da verdade em relação à violação dos direitos humanos, tenha sido em vão. Ou ainda: que as forças que sustentaram a concepção violenta, golpista e antidemocrática durante todas essas décadas, possam vir a destruir os caminhos de paz e de justiça que foram traçados por tanta gente neste país.

Com esta perspectiva em mente, considerando o nosso campo de atuação, vemos como algo de muita importância o resgate e a valorização da memória da resistência de pessoas e grupos do setor das igrejas, evangélicas e católica, para criar melhores condições de se enfrentar a cultura e as práticas de ódio e autoritarismo hoje.

Desta forma, o Coletivo Memória e Utopia, a Casa Galileia, o Instituto de Estudos de Religião (ISER), Koinonia: Presença Ecumênica e o grupo jovem Novas Narrativas Evangélicas se unem para promover uma experiência coletiva de acesso à memória da relação das igrejas com o autoritarismo, ontem e hoje. Esperamos realçar as resistências de cristãos e cristãs a partir dos anos 1960, como também refletir sobre o presente relacionamento das igrejas e lideranças evangélicas com o novo autoritarismo de extrema direita que se forjou no Brasil nos últimos anos. 

Essa iniciativa se soma a dezenas de outras, espalhadas pelo país, com diferentes enfoques, objetivos e pertenças. As atividades que o nosso Coletivo Memória e Utopia realizará, juntamente com as organizações parceiras, acontecerão na cidade do Rio de Janeiro em dois dias e em locais muito significativos. 

No primeiro momento, teremos uma roda de conversa em torno do tema das igrejas durante a ditadura militar, com foco na resistência, relacionando-o ao enfrentamento do autoritarismo hoje. Ela ocorre nesta sexta-feira 31, na sede do ISER, uma organização que teve os seus primeiros passos direcionados à superação do arbítrio e do autoritarismo nos anos de 1970. 

O segundo momento será no sábado 1 com uma caminhada pedagógica, dirigida pelo Centro do Rio, começando na Avenida Erasmo Braga, em frente ao prédio onde funcionou a Confederação Evangélica Brasileira (CEB), cujo trabalho foi violentamente desmantelado pelos órgãos repressivos ligados aos governos militares. Faremos paradas estratégicas em alguns locais, com o término na sede de Koinonia, no bairro da Glória, organização ecumênica originada da experiência dos resistentes ao processo de perseguição política e eclesiástica que a CEB sofreu. Nestas paradas ocorrerão conversas e reflexões sobre o significado histórico de cada local e uma avaliação sobre o contexto das igrejas e dos autoritarismos no Brasil de hoje. A memória das atrocidades cometidas pela ditadura militar no Brasil e a resistência que os grupos que defendem a paz, a justiça e a democracia fizeram são fundamentais para que nunca mais algo tão vil se repita.

Para saber mais sobre esta memória, é possível baixar gratuitamente o e-book “As igrejas evangélicas na ditadura militar: dos abusos de poder à resistência cristã(Ed. Alameda, 2022), produzido pelo Coletivo Memória e Utopia.

Mônica Souza é antropóloga e Claudio Ribeiro é pastor e teólogo metodista. Ambos integram o coletivo Memória e Utopia.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo