Diálogos da Fé

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Evangélicos negam assistir à Globo, mas se divertem às escondidas com Ramiro e Kevin

No final das contas, todos somos espectadores ávidos das vicissitudes da vida, sejam elas encenadas nas telas da TV ou nas páginas da Bíblia.

Kevin e Ramiro. Foto: Reprodução/TV Globo
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Domingo à noite. Um pastor evangélico com fervor digno de um crítico de TV decidiu pregar sobre os “males insidiosos” da novela das 9 da Globo, Terra e Paixão. Ele começou descrevendo a trama onde o casal protagonista, vivido por Cauã Reymond e Bárbara Reis, parece mero coadjuvante perto da história de Ramiro, interpretado por Amaury Lorenzo. O peão, dividido entre sua masculinidade rústica e o amor oculto por Kelvin, personagem de Diego Martins, se tornou o centro da pregação. Com uma descrição tão vívida que quase podia se ouvir o tema de abertura da novela, o pastor condenou a trama homossexual, mas, curiosamente, encerrou sua fala reproduzindo o bordão do personagem de Lorenzo: “eu sou macho”.

A ironia da situação está no fato de que, para pregar contra a novela com tamanha precisão, o pastor teria que ser um espectador mais assíduo do que gostaria de admitir.

Mesmo diante do declínio geral da audiência televisiva frente ao avanço do streaming e das mídias sociais, a TV Globo permanece líder com uma audiência diária de 76 milhões de brasileiros – eram “100 milhões de uns”, como anunciava a campanha da emissora em 2017. A recente mudança de postura em relação aos evangélicos parece ir além de uma mera resposta a esse encolhimento. A emissora percebe a influência política crescente dos líderes dessas denominações. Não é apenas um grupo religioso em ascensão, mas uma força política em plena efervescência. A mudança, então, sugere uma estratégia de longo prazo, visando estabelecer alianças e influenciar um grupo cuja força política e social é indiscutivelmente significativa.

Desde então, lançou uma novela das sete com uma protagonista evangélica, promoveu um reality show gospel no Altas Horas – programa que, até pouco tempo atrás, brincava com as dúvidas do público sobre sexualidade – e recheou sua programação com presenças frequentes de cantores gospel, com direito a Regis Danese no palco de Luciano Huck, enquanto uma visivelmente comovida Lívia Andrade – conhecida por suas atuações em programas do SBT como o “Fofocalizando” e por piadas de duplo sentido no “Programa Silvio Santos” – assistia.

O alcance da TV Globo segue massivo em um cenário onde outras emissoras de TV aberta lutam para manter sua relevância. Um poder que atinge todos os estratos sociais e demográficos, incluindo o crescente segmento evangélico que, dentro de suas congregações e discursos, afirmam o contrário. Uma contradição enraizada na complexa dinâmica de identidade religiosa e cultural.

A rejeição pública da Globo por parte dos evangélicos é, em muitos aspectos, uma postura que reforça a coesão do grupo e a diferenciação do “outro”. Um jogo de máscaras que é tanto parte da autodefinição quanto da autopreservação. Muitos de seus membros, apesar de consumirem o conteúdo da TV carioca, mantêm uma postura de rejeição pública à emissora, parte de um discurso mais amplo que busca demarcar fronteiras. Essa negação, porém, não passa de uma fachada, uma peça de teatro social onde a audiência da Globo é um segredo aberto.

A relação historicamente conflituosa é um capítulo à parte na narrativa da interação entre mídia e religião. Durante décadas, a Globo retratou os evangélicos de maneira estereotipada, frequentemente relegando-os a papéis caricatos em suas tramas. Essa representação simplista refletia não apenas um descompasso cultural, mas também uma certa indiferença da emissora para com um segmento crescente e cada vez mais influente da sociedade brasileira.

No entanto, a ascensão dos evangélicos, impulsionada principalmente pelo vigoroso movimento pentecostal, não apenas alterou a paisagem religiosa do Brasil, mas também desafiou a Globo a reconsiderar sua abordagem. Neste cenário de transformação, a mudança de postura é tanto uma necessidade estratégica quanto um reconhecimento tácito do poder desse grupo. Ao sinalizar para os evangélicos, a Globo busca mais do que apenas estender sua audiência; busca uma legitimação cultural e um acesso mais profundo a um grupo demográfico que exerce crescente influência política e social.

A abordagem da emissora revela uma divisão tática em duas frentes. Primeiro, há as lideranças – pastores e figuras proeminentes de grandes denominações evangélicas. Aqui, a Globo adota uma postura cautelosa, muitas vezes optando por silenciar os escândalos envolvendo essas igrejas, um movimento que pode ser interpretado como uma forma de manter canais de diálogo abertos e evitar conflitos diretos com esses líderes influentes.

Por outro lado, está o segundo grupo, os fiéis, cujo poder de consumo e influência social não podem ser ignorados. Com uma habilidade quase camaleônica, a emissora adapta sua linguagem e conteúdo para engajar esse público, se tornando especialista na arte de dialogar com aqueles que publicamente negam assisti-la, mas que, na privacidade de seus lares, permanecem espectadores leais. Dicotomia que revela um jogo sofisticado de influência e percepção, onde a imagem pública e as ações privadas muitas vezes divergem.

Na prática, os evangélicos respondem “Boa noite” a William Bonner de segunda à sexta, após a novela das sete. Sabendo da dinâmica, a emissora explora habilmente essa brecha, apresentando-se como um reflexo das múltiplas faces da sociedade brasileira ao acenar simultaneamente para os evangélicos ao mesmo tempo em que aposta na diversidade, com a inclusão de atrizes trans e personagens gays em suas novelas.

Mais do que uma questão de justiça social, o Grupo Globo entende a negociação de discursos como uma estratégia de mercado. Ao promover a inclusão de grupos historicamente marginalizados, a Globo não apenas se posiciona como progressista, mas também amplia seu apelo e relevância em um público diversificado. Uma estratégia de inclusão pode ser vista sob uma luz cínica, uma tentativa de ser tudo para todos, sem se comprometer profundamente com nenhuma das causas que representa.

As lideranças das grandes denominações evangélicas mantêm um discurso de antagonismo em relação à Globo. Este antagonismo, no entanto, é tão performático quanto o engajamento da Globo com esses grupos. É um jogo de interesses onde todos os lados fingem, cada um buscando maximizar sua influência e poder. Esse teatro de aparências, onde todos os atores sabem seus papéis, é um retrato vívido da dinâmica religiosa do Brasil contemporâneo, um palco onde a realidade e a representação muitas vezes se confundem.

No cenário teatral da TV brasileira, onde a realidade frequentemente imita a arte, a novela das 9 da Globo, Terra e Paixão, de Walcyr Carrasco, surge como uma metáfora inadvertida para a relação turbulenta e apaixonada entre os evangélicos e a própria emissora. “Terra”, neste contexto, simboliza a identidade firme e inabalável, a base sólida da fé e da tradição que os evangélicos defendem com ardor. Por outro lado, “Paixão” reflete a atração magnética e muitas vezes inconfessável que os envolve, um fascínio quase pecaminoso pelas tramas envolventes e pelas sagas que a Globo habilmente transmite.

Terra e Paixão, poderia muito bem ser o lema não declarado dessa relação complexa e cheia de nuances: uma mistura de firmeza nas convicções e uma paixão secreta pela narrativa cativante que a televisão oferece, especialmente aquela que se desenrola sob as luzes cintilantes da novela das 9.

A própria tradição evangélica se nutre de narrativas épicas e conflitos dignos de um roteirista habilidoso. As histórias bíblicas não são apenas relatos religiosos; são dramas humanos, repletos de traições, redenções e amores proibidos. Talvez, no fundo, o fascínio dos evangélicos pelas tramas da Globo seja um reflexo dessa paixão ancestral por histórias que capturam a complexidade da condição humana. Assim, sob o manto da condenação, esconde-se uma atração quase inevitável pelos enredos que ecoam as próprias sagas bíblicas, revelando que, no final das contas, todos somos espectadores ávidos das vicissitudes da vida, sejam elas encenadas nas telas da TV ou nas páginas da Bíblia.

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