Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Eparrei Iansã

Rainha dos raios, senhora das tempestades, Iansã é uma deusa guerreira, apaixonada pela vida e guardiã dos mistérios da morte

'Chamar por Iansã não fazia a tempestade cessar, mas pelo menos a acalmava'
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O cheiro de terra molhada anunciava que uma chuva forte estava por vir. Ela se apressou. Sabia que naquele horário, depois de vários dias de calor infernal, a tempestade faria um estrago. E aquele guarda-chuvinha que sempre carregava na bolsa não daria conta de protege-la.

O vento começou a soprar cada vez mais forte. Folhas se desprendiam das árvores, enquanto roupas e cabelos esvoaçavam. Ela insistia em continuar caminhando, mas a ventania a segurava. Brigava, mas era uma corrente tão violenta que se continuasse aumentando daquele jeito iria carrega-la facilmente.

Um estampido, o clarão de um relâmpago cortando o céu e o dia virou noite. Os estrondos, o vento, os raios eram, para ela, uma combinação assustadora. “Eparrei, minha mãe!” Chamar por Iansã não fazia a tempestade cessar, mas pelo menos a acalmava.

Foi o tempo de chegar em casa e a chuva começou. Espessa, intensa, tão vigorosa que só mesmo a intervenção dos orixás poderia impedir uma tragédia. Ela quis saber dos filhos. O mais velho, percebendo o temporal, nem se atreveu a ir pra faculdade.

A menina voltou esbaforida e ensopada, xingando o namorado que se atrasou e a fez correr pra tentar escapar. Faltavam os gêmeos, que saíam do colégio mais cedo, mas sempre ficavam brincando na quadra antes de retornar.

Ela já ficou desesperada. Conhecia bem o ímpeto dos filhos temporãos.

– Vou atrás.

– Calma, mãe, devem estar na casa de algum coleguinha.

Telefonou pra quem podia. Da escola, informaram que os meninos haviam saído no horário normal. Nas casas dos amigos mais próximos também não estavam.

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Continuava chovendo torrencialmente e a cada trovoada sua angústia aumentava. “Minha mãe Iansã, protege meus filhos”, pedia enquanto olhava pela janela à procura de algum sinal.

“Eu não vou aguentar”. Tempestade na periferia é sempre motivo de preocupação. Jogou uma capa nas costas, pegou o guarda-chuva e saiu feito um raio. Gritou o quanto pôde. Vasculhou as praças, bateu nas portas, correu cada marquise. Nada.

Lágrimas e chuva. Ela já não conseguia raciocinar. Viu um movimento na direção do córrego. Seu coração gelou. Não queria pensar nessa hipótese, mas o murmurinho aumentava e, apesar do tremor nas pernas, ela caminhava.

Um medo de perguntar o que estava acontecendo, mas logo alguém gritou: “duas crianças foram arrastadas”. Suas pernas bambearam, caiu ali mesmo, de joelhos, e seu grito de aflição encobriu até o estrondo dos trovões.

Outras mães juntaram-se a ela, sentiam a mesma agonia. Duas, em especial, dividiam a angústia de não saber dos filhos. Três mulheres guerreiras, sozinhas. Provedoras de suas famílias, fazendo as vezes dos genitores, que somente deixaram o nome nos registros e caíram no mundo. Às margens do córrego, à margem da vida, lágrimas e chuva.  

Em comum, a cor retinta e as histórias de luta e superação.

– Valei-me, minha mãe Iansã.

– Ô, minha Nossa Senhora Aparecida, me ajuda.

– Senhor Jesus, seja por mim.

Três mulheres de fé, solidárias entre si, numa apreensão que só as mães entendem.

O temporal cedeu e as buscas começaram. Ela chamava por Iansã com tanta confiança que a católica achou por bem se aproximar. Cada uma em sua fé, rezaram lado a lado. Chamaram a outra mãe, que relutou a princípio. “Deus é um só”, argumentaram. “E nossa dor também”, completou a evangélica ao se juntar às orações.

– Que nossos filhos estejam bem.

– Que seja apenas um engano.

Os vizinhos se aproximaram trazendo uma criança. “Jesus seja louvado”, exclamou a evangélica enquanto abraçava o filho. Um choro de alegria, contido assim que se lembrou da dor de suas companheiras.

Eram três crianças desaparecidas e duas mães desesperadas. Raios esparsos ainda iluminavam o céu noturno. Ela não queria pensar no pior, mas as deduções eram inevitáveis. Os filhos mais velhos chegaram, a notícia já se espalhara e os bombeiros acabavam de anunciar a localização de um corpo na outra ponta do córrego.

Apertou com força a mão de sua companheira de dor e seguiram juntas. Passos apertados, mas a distância parecia imensa. Um filme passou pela sua cabeça. Lembrou dos gêmeos, desde o momento em que seu pai de santo anunciou nos búzios que ela estava grávida e que viriam dois de uma vez.

Dois abortos espontâneos a deixaram traumatizada, já tinha decidido que não queria mais filhos, ainda mais com aquele novo companheiro tão irresponsável. Só que Ibeji apareceu no jogo, Iansã anunciou que os gêmeos viriam e que eram seus filhos, portanto, Ela proveria.

Gestação e parto difíceis. Iansã tomou seu corpo bem na hora. O primeiro nasceu pelos pés e o segundo veio com cordão umbilical enrolado no pescoço. Estava roxo, já sem os sinais, mas Iansã estendeu os braços e os médicos, mesmo sem entender, consentiram sua intervenção. Um sopro e a criança soltou seu choro estridente.

Nasceram vencendo a morte e cresceram desafiando os perigos. Iniciados desde o primeiro ano de vida, eram os grandes companheiros da mãe no terreiro e a alegria da casa, sempre brincalhões e matreiros.

Chegaram. Naquele exato momento, os bombeiros içavam o corpo. Um forte estalo e o clarão assustou a todos. “Eparrei!” Já não era mais ela. Diante da morte, Iansã se manifestou e abraçou com profundo afeto a outra mãe, amparando-a no exato momento em que o capitão descerrou o rosto da criança. A informação de dois desaparecidos não procedia.

Iansã subiu a ladeira e seguiu para o terreiro. Foi lá que os gêmeos se abrigaram na iminência da tempestade. O pai de santo estava na viajando, mas eles sabiam que o barracão ficava sempre aberto, pularam o muro e ali adormeceram esperando a chuva passar.

Um alívio, apesar da tristeza pela mãe que perdera seu filho. Ela não teve forças pra ir ao enterro. Reencontrou suas companheiras na missa de sétimo dia. Mesmo a evangélica fez questão de levar seu abraço. Mais uma vez choraram juntas.

Os novos se preparam pra perder os velhos, mas os velhos nunca estão preparados pra perder os novos. Essa morte fora de ordem, fora de lugar, é a dor mais profunda, mais triste que uma mãe pode ter. “Ai, Iansã, não me deixe passar por isso. A senhora é mãe de nove filhos, saiu pelo mundo vencendo suas guerras sem nunca abandona-los. Sempre vinha ao menor sinal de perigo, como um raio, numa rajada de vento, socorrer, amparar, salvar. Obrigado por não me abandonar, mas cuida dessa mãe que perdeu seu filho, conforte o coração dela”, ponderou numa oração silenciosa.

A crente se aproximou, foi consolar sua irmã católica:

– Uma pessoa de tanta fé não merecia passar por isso. Por que com você? Por quê?

– Por que não comigo? Respondeu resignada com os olhos firmes na imagem de Nossa Senhora Aparecida.

Os gêmeos brincavam no pátio. Os ibejis, filhos de Iansã, mais uma vez zombaram da morte.

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