Diálogos da Fé

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Deus prefere ateus gentis a cristãos que odeiam?

Apesar da instrumentalização política e ideológica das religiões, ainda há aqueles que colocam a gentileza acima de qualquer dogma

Fiquei surpresa com as reações positivas à foto: só 10% dos comentários discordaram da afirmação
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Dias atrás, postei em uma mídia social a foto de um dos típicos quadros de avisos que ficam à entrada de igrejas nos Estados Unidos e funcionam como chamadas evangelísticas.

O quadro pertence à Igreja Metodista Unida em Rose City Park, em Portland (Oregon), e nele estava escrito: “Deus prefere ateus gentis a cristãos que odeiam”.

Decidi compartilhá-la, a propósito de algumas postagens que passaram pela minha tela, relacionadas aos últimos acontecimentos políticos do país, cujo conteúdo de ódio era muito forte. Boa parte das publicações eram criadas ou reproduzidas por pessoas reconhecidas ou declaradamente cristãs.

Confesso que fiquei surpresa com as reações tão positivas à foto e ao seu conteúdo. As “curtidas” triplicaram a média de minhas postagens mais populares e os compartilhamentos se igualaram em número. Apenas 10% dos muitos comentários explicitaram discordância da frase.

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Por conta disto, fui instigada a saber mais sobre a foto que reproduzi. Descobri que foi publicada na página da igreja em uma mídia social, depois da divulgação da frase na entrada do templo em março de 2012.

A postagem viralizou e gerou uma enxurrada de reações, muitas negativas, mas a grande maioria (como na minha experiência), positivas. Matérias sobre o caso foram publicadas em diversas mídias noticiosas, até mesmo no Brasil.

No dia seguinte, o pastor Tom Tate comentou na página: “Por que todo este alvoroço? Por que Deus prefere a gentileza do que o ódio? Eu pensaria que isso é uma dádiva. Não é esse o significado de uma das parábolas mais citadas: o Bom Samaritano? No que dizia respeito ao povo de Jesus, os samaritanos eram ateus. O que Jesus quis dizer? O samaritano se converteu às ‘crenças corretas’? Não, de acordo com a história. Na verdade, eram os doutores da lei, aqueles com ‘crenças corretas’ que não entendiam, que ‘passavam de largo’ [do homem que sofria]”.

O pastor também afirmou ao jornal The Huffington Post: “Aqueles que estão irritados pensam que estamos opondo ateísmo ao cristianismo. Na verdade, estamos opondo gentileza ao ódio”.

Por certo, um cristão que odeia e ainda espalha ódio é uma figura totalmente desconexa do que significa a fé cristã.

Na minha postagem, ao responder a uma pergunta sobre qual texto da Bíblia seria referência para a afirmação do quadro de avisos, respondi com meu conhecimento leigo mas apaixonado pela beleza das Escrituras e seu conteúdo.

Eu não indicaria um texto bíblico mas sim a teologia bíblica que permeia todo o Antigo e o Novo Testamentos: a teologia do deserto, dos profetas e das pequenas comunidades.

Ela se contrapõe frontalmente à teologia sacerdotal/monárquica/palaciana, que também permeia o Antigo Testamento, a que enfatiza um Deus que é religioso, cruel e que pertence a um povo eleito/separado que está acima de todos os demais povos.

Na teologia do deserto/dos profetas, Deus não tem religião, é o Senhor do mar e da terra e de tudo o que neles habita, Senhor de todas as nações e de toda a humanidade e demais seres. Há inúmeros textos nos Salmos, nos livros dos profetas (como Amós 9; Isaías 45, entre muitos), que dizem que o culto que Deus prefere é a prática do amor, da misericórdia e da justiça, por isto abomina as festas religiosas e os louvores desprovidos da prática da justiça e do bem, e também os sacrifícios hipócritas.

Esta teologia embasa a pregação e a prática de Jesus, a vivência das primeiras comunidades cristãs e vários ensinamentos das cartas dos apóstolos, e sobre isto, há muitos exemplos.

O pastor Tom Tate citou a parábola do Bom Samaritano (sobre a qual já escrevi neste espaço). Há muitas outras narrativas e pregações de Jesus como a que diz que pelos frutos (aquilo que fazem) é que as pessoas serão conhecidas por Deus e que nem toda a pessoa que diz “Senhor, Senhor” entrará no Reino dos Céus (Mateus 7).

Tudo isto culmina na parábola registrada em Mateus 25, que fala do Dia do Juízo Final, quando haverá pessoas escolhidas para o encontro com o Divino sem sequer saberem que Deus presta atenção no que fazem e se agrada.

Diz o texto que elas praticavam o amor, a misericórdia e a justiça. Já outras serão desprezadas por não terem feito isto, que, afinal, é o culto verdadeiro que Deus quer.

Há outras expressões desta teologia nos textos dos apóstolos mas a mensagem mais específica aos cristãos que destilam ódio está na primeira carta de João, capítulo 4: “Se alguém diz: Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual vê, como pode amar a Deus, a quem não vê?”.

Registro também com certa satisfação que a igreja que divulgou a frase é Metodista, como eu, e seus líderes estão seguindo os preceitos do Metodismo, doutrina evangélica com valores inclusivos. Certamente estes valores também são encontrados em outros grupos cristãos e precisam ser sempre reafirmados.

Neste tempo em que vivemos, religiões são instrumentalizadas em nome de disputas políticas e ideológicas, baseadas em desrespeito e ódio. No entanto, cumpre reconhecer e valorizar a existência de grupos e líderes religiosos fiéis aos princípios bíblicos e éticos que alimentam a gentileza acima de qualquer dogma.

A reação positiva à minha postagem é um sinal de que ainda há esperança.

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