Diálogos da Fé

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Deus diz ao povo: ‘O que as mulheres pedem é justo. Dê salário igual a todas elas’

É em um mundo de mentiras, pânico e extremismos morais que temos de disputar corações e mentes da população brasileira, sobretudo das mulheres

Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados
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Gosto muito de uma passagem bíblica registrada no Antigo Testamento, na qual cinco mulheres questionam o direito da herança para Moisés. Esse texto está registrado em Números 27 e conta a história de Macla, Noa, Hogla, Milca e Tirza, cinco mulheres que não tinham irmãos e que diante da morte do pai perderiam suas terras, uma vez que, naquele contexto, apenas filhos homens tinham direito à sucessão. Corajosamente, essas cinco mulheres vão a Moisés e pedem que tenham direito à terra.

Moisés, diante de tal questionamento, decide consultar Deus sobre o pedido das irmãs. Deus imediatamente diz: “o que elas pedem é justo, dê a terra a elas”. (Números 27,7). E finaliza: “Os israelitas devem obedecer a essa lei como eu, o Senhor, tenho ordenado a você, Moisés”. Ora, esse texto é belíssimo pois mostra que em uma disputa por direitos iguais entre homens e mulheres, Deus se coloca ao lado da equidade.

Eu desconfio, porém, que esta passagem não esteja disponível nos exemplares da Bíblia de alguns deputados e deputadas federais que compõem o grupo que se reivindica “terrivelmente cristão” no Parlamento. Ou, ainda, alguns destes parlamentares precisam ler a Bíblia com certo cuidado e atenção. Haja vista a vergonha que passaram em 4 de maio, na apreciação do Projeto de Lei nº 1.085/2023, enviado pelo presidente Lula ao Congresso Nacional, cujo teor versa sobre a equiparação salarial entre homens e mulheres.

É importante salientar que a Constituição Brasileira já proíbe qualquer discriminação por causa do gênero. Contudo, esse PL regulamenta sanções que empresas podem receber por pagarem salários inferiores a mulheres. A lei ainda regulamenta uma série de dispositivos de transparência sobre pagamentos de proventos, para que as empresas possam ser fiscalizadas e punidas, se for o caso. Em uma votação que tinha tudo para ser unânime,  foram 325 votos favoráveis e apenas 36 votos contrários.

Como “a Terra Plana dá voltas”, um dos contrários à aprovação do projeto e um dos grandes  propagadores de fake news no Parlamento, Deltan Dallagnol (Podemos-PR), provou do próprio veneno e foi vítima de notícias enganosas. O deputado, que convictamente se opõe ao PL da Fake News (PL 2630/2630), recebeu a pecha de justificar que salário menor para as mulheres seria bíblico. Embora tal afirmativa não tenha ocorrido, eu não estranharia esse tipo de narrativa sendo proferida em igrejas e organizações políticas de cunho fundamentalista, ao qual Dallagnol está relacionado, justificando um ataque ao feminismo que supostamente seria contra a família tradicional.

Para mim fica nítido que haviam duas justificativas para ser contrário ao projeto: proteger empresas que promovem a desigualdade remuneratória –  ainda mais com o voto contrário orientado pela Bancada do Partido Novo, conhecidamente como um partido de empresários com linha neoliberal. E, em segundo lugar, reafirmar um discurso familista que vincula o veto a qualquer direito da mulher a uma suposta “defesa da família”  com cunho religioso e fundamentalista.

Na lista dos que se colocaram contra a equidade entre os salários, figuram dez mulheres e 26 homens. Com base no levantamento realizado pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), constatei que das 10 mulheres que votaram contrárias ao projeto, apenas Adriana Ventura (Novo-SP) não teve sua religião publicamente identificada. As demais são todas ligadas a partidos de direita com tendências cristãs fundamentalistas. As católicas são: Bia Kicis (PL-DF), Carol de Toni (PL-SC), Rosângela Moro (União-SP), Carla Zambelli (PL-SP), Any Ortiz (Cidadania-RS) e Chris Tonietto (PL-RJ). As evangélicas são Dani Cunha (União-RJ) e Silvia Waiãpi (PL-AP), enquanto Juliana Zanatta (PL-SC) se declara cristã, apenas.

Por essa caracterização, não dá para dissociar esse evidente ataque aos direitos das mulheres do fundamentalismo religioso que tem ocupado o Congresso Nacional. Sobretudo o uso de figuras femininas para ratificar uma lógica patriarcal que endossa o lugar da mulher desejável e com legitimidade moral submissa às figuras masculinas e na contramão dos direitos das mulheres.

Isso deve nos acender um alerta, pois nesta narrativa fundamentalista os direitos das mulheres só devem ser defendidos se estiverem vinculados à família. Com o discurso familista, esses parlamentares estão usando a religião e a família como justificativa para atacar os direitos das mulheres. E mesmo quando utilizam a Bíblia para defender tais absurdos, distorcem seu conteúdo para defenderem o que querem.

Nesse projeto, mesmo o mais fundamentalista dos deputados poderia votar favorável, embasado em uma leitura literal de Números 27. Contudo, escolhem imiscuir os direitos das mulheres com um suposto direito da família – e os direitos da família estariam em primeiro lugar.

Temos que considerar que existem milhares de mulheres que preferem estar em um lugar de submissão, se essa for a condição para que sua família esteja segura. Porque não podemos desconsiderar que há medo, insegurança e muita mentira rodando por igrejas afora. E a multidão de fiéis que veem na religião um porto de segurança e humanização não questionou os votos contrários desses parlamentares, porque enxergam neles pessoas que protegem a religião, a família e a moral. É nesse mundo de mentiras, pânico e extremismos morais que temos que disputar corações e mentes da população brasileira, sobretudo das mulheres.

Desta vez, a razão venceu, e o PL que favorece as mulheres foi aprovado por ampla maioria, mas a próxima proposta passará? Não devemos subestimar um grupo que tem segurança de votar de forma absurda contra esse PL, sem medo de perder base e/ou poder político. Porque eles sabem que manipular a religião no discurso político traz muito poder, principalmente o poder do convencimento das bases. Sigamos na luta, e, desta vez, cumpra-se a lei de Deus e dos Homens.

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